Desde 2020, os brasileiros não sabem quanto de resíduos de agrotóxicos há em maçãs, laranjas, tomates, pimentões e outros alimentos que são vendidos em feiras e supermercados pelo país. Isso porque o principal programa de monitoramento do Governo Federal não divulgou o resultado de coletas feitas desde o início do governo de Jair Bolsonaro (PL). A última publicação foi justamente em 2019, a partir de amostras coletadas em 2017 e 2018.
Criado em 2001, o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) teve sete relatórios publicados. “Na medida em que o próprio governo avalia e autoriza agrotóxicos, que são substâncias que comportam perigo à saúde humana, o monitoramento se torna obrigatório. [O programa] é o que permite saber o que está acontecendo depois que libera determinado agrotóxico, o que está sendo contaminado e em qual proporção”, afirma Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz que também foi um dos fundadores do PARA quando era gerente de toxicologia na Anvisa.
Em agosto de 2020, a Anvisa informou que as coletas seriam suspensas temporariamente devido à pandemia de Covid-19. Não foram divulgados os resultados das coletas feitas no ciclo do segundo semestre de 2018 e 2019, e desde 2020 não houve novas coletas para avaliar as frutas e verduras consumidas pela população. Por meio da assessoria de imprensa, o órgão respondeu que o relatório com os dados de 2018 e 2019 está previsto para ser divulgado no segundo semestre deste ano. Em relação às novas coletas, a assessoria respondeu que “estão dando andamento às atividades preparatórias para execução das coletas e análises de amostras a partir do segundo semestre de 2022”.
O resultado da última edição foi avaliado pela Agência Pública e Repórter Brasil e constatou que laranja, pimentão e goiaba foram os principais alimentos com agrotóxicos acima do limite. A cada dez pimentões, oito tinham agrotóxicos proibidos ou acima do permitido, já 42% das amostras de goiabas, 39% das cenouras e 35% dos tomates testados estavam em desconformidade. Foram 14 frutas e legumes analisados na última edição do Programa e as amostras foram recolhidas entre agosto de 2017 e junho de 2018 – ou seja, antes do início do governo de Jair Bolsonaro, que lidera o recorde histórico de liberação de agrotóxicos.
Nos últimos anos, o Brasil teve uma média anual de aprovação de 500 novos produtos, como mostra relatório da organização Amigos da Terra, de autoria das pesquisadoras Larissa Mies Bombardi e Audrey Changoe. “Ao mesmo tempo em que o governo pede que a Anvisa acelere o registro de novos agrotóxicos, não mantém programas como o PARA”, avalia Fran Paula, integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e engenheira agrônoma. Segundo ela, a função da Agência de garantir a saúde da população brasileira estaria sendo deturpada para atuar a serviço de indústrias químicas. “O Programa é um exemplo desse ataque e tentativa de mudar o foco de atuação da própria Agência”, afirma.
A atuação da Anvisa em relação aos agrotóxicos está na mira do PL 6.299, apelidado “Pacote do Veneno”. O projeto que tramita no Senado prevê concentrar no Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) a responsabilidade pela aprovação de novos produtos, retirando o poder da Anvisa e do Ibama. Atualmente, para que um novo agrotóxico possa ser registrado no país, precisa ser aprovado pelos três órgãos. Luiz Cláudio Meirelles analisa que a aprovação do PL 6.299 significaria o fim do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos da Anvisa. “Se tirar a competência da Saúde [para registro de agrotóxicos], dificilmente a Agência vai ficar priorizando o Programa”, diz. Meirelles avalia que houve piora na área que trata de questões vinculadas aos agrotóxicos.
O primeiro relatório do PARA divulgado pela Anvisa continha informações sobre a quantidade de agrotóxico em alimentos entre 2001 e 2007, e informava que o programa seria implementado gradualmente, por razões de infraestrutura (como escassez de laboratórios públicos que fazem as análises) e articulação com as vigilâncias públicas estaduais. Os três relatórios seguintes foram anuais (2008, 2009 e 2010). Depois, passou a condensar anos de forma irregular, com relatórios monitorando amostras de 2011 e 2012, e na sequência de 2013 a 2015.
Para a integrante da ANA, Fran Paula, a oscilação dos períodos divulgados já demonstrava uma desestruturação do programa. “Transmitia a sensação que está tudo bem, que não precisa mais monitorar os alimentos”, avalia.
Em resposta à reportagem, a assessoria da Anvisa informou que “a decisão sobre o período a ser divulgado depende prioritariamente da obtenção e consolidação de todos os resultados das amostras analisadas, além de se considerar o contexto da execução do Programa”.
O ex-gerente da Anvisa lembra que, mesmo quando realizado, o programa já seria insuficiente, porque monitora apenas alimentos in natura. “[O governo] teria que monitorar alimentos processados, de origem animal, além da água, para ter uma ideia melhor de como estão os níveis de contaminação por agrotóxicos no país, que é campeão em uso de venenos”, afirma. Tais monitoramentos não são feitos ou divulgados de forma sistemática pelo governo brasileiro, mas há iniciativas que investigam e divulgam as situações. Um exemplo é o Mapa da Água, publicado pela Agência Pública e Repórter Brasil, que revela dados públicos para mostrar que há agrotóxico na água que sai das torneiras em várias cidades do país. Outro exemplo é a pesquisa realizada pelo Idec que encontrou pesticidas em 60% de alimentos ultraprocessados, como bisnaguinha, bolachas e bebidas lácteas.
Além do PARA, executado pela Anvisa, o Mapa também monitora resíduos de agrotóxicos em alimentos. “Há uma grande diferença, porque o PARA [Programa da Anvisa] é o único que faz análise de resíduos de agrotóxicos no alimento que vai para mesa da população, na gôndola do supermercado. O programa do Mapa faz as coletas na área de produção”, avalia Fran Paula. “Entre o local de produção e o consumo tem um caminho muito grande. Uma laranja produzida no Rio Grande do Sul pode demorar cinco ou seis dias até chegar no Mato Grosso, por exemplo, e teria inclusive maior aplicação de produto químico. Então é preciso considerar que há diferença entre os programas e sua finalidade”, diz.
Mudanças significativas já foram alvo de críticas na última pesquisa realizada pela Anvisa, divulgada em 2019. O relatório teve tom otimista, informando que “alimentos vegetais são seguros”. Pela primeira vez, a Anvisa avaliou o potencial de risco crônico (a longo prazo) para a saúde, além do risco agudo (a curto prazo). Para isso, foram usados dados sobre quanto os brasileiros consomem em média de cada alimento e o peso dos consumidores a partir de 10 anos de idade, ou seja, ignorando o risco para crianças de zero a 10 anos.
“Não foram identificadas situações de potencial risco à saúde dos consumidores”, informa o documento em relação aos riscos crônicos. O relatório identificou risco agudo em apenas 0,89% das amostras, ou seja 41 amostras de frutas e legumes. Destas, 27 eram laranjas. O documento não colocou de forma clara informações que foram destaque na divulgação de relatórios anteriores.
O relatório não dava destaque, por exemplo, para a informação de que, a cada 14 laranjas vendidas nos mercados, uma tinha agrotóxico suficiente para causar intoxicação imediata. Cinco laranjas analisadas apresentaram mais de cinco vezes o limite de segurança de exposição, todas para o agrotóxico carbofurano, um inseticida proibido no Brasil desde 2017 por causar malefícios ao sistema nervoso, como a morte de neurônios.
Análise independente deste mesmo relatório conduzida pelo Grupo de Trabalho de Agrotóxicos da Fiocruz aponta que em 34% das amostras foram identificadas misturas de agrotóxicos, variando de dois a 21 tipos diferentes de ingredientes ativos. “Quando mudou a metodologia, que colocou a dose de referência aguda como parâmetro, acabou! É claro que não vai ter uma quantidade de resíduo de agrotóxico que provoque este efeito agudo em alguém — apenas em casos muito raros. Mas não é isso o que importa em uma avaliação toxicológica de resíduo, porque em sã consciência ninguém quer comer uma alface com 15 diferentes tipos de agrotóxicos”, finaliza Meirelles.