A história sempre se repetia…. e dessa vez não foi diferente. Na pressa, Lin Xin Cortez esqueceu em cima da mesa, suas luvas. Não podia andar sem elas. Estas as protegiam das asperezas táteis do mundo. Por causa desse detalhe, pensava que sua presença causava um certo incômodo.
Incômodo este desconcertante e silencioso. Assim, carregava consigo uma certa culpa e timidez. Fazia o mínimo de barulho, pensando que assim as pessoas não a notariam. Ledo engano! Quanto mais se fazia invisível, mais visível se tornava. A sua pseudo pequenez a tornava uma gigante.
Gigante pálida, magra, de cabelos prateados, olhos verdes amendoados, cabelos lisos e compridos. Andava sempre cabisbaixa e sozinha. As mãos no bolso, tentando a todo custo esconder o par de luvas… Ou seria a culpa? Toda vez que esquecia as luvas e tocava em algum objeto lembrava vagamente como tudo aquilo acontecera. Não sabia falar com precisão, mas era a prova viva do que acontecera.
Numa tarde qualquer, de um ano longínquo foi visitar o pai no laboratório. Este era um renomado cientista. Todos falavam que ela se parecia muito com ele, puxara-lhe os olhos asiáticos e os cabelos corridos. Ao chegarem no local, não o encontraram.
Encantada com o universo que se descortinava em seus olhos curiosos e ávidos por conhecimento, se perdera pelas prateleiras e estantes lotadas de frascos, lâminas, microscópios, etc.
Assim, desvencilhou sutilmente das mãos firmes da mãe e começou a passear pelo espaço. Um cheiro despertou seu olfato, fisgando-a.
Caminhou até o local e deparou com uma planta em estado de decomposição.
Ficou alguns minutos observando aquele cenário mórbido, com odor de morte, misturado com formol. Ao longe sua mãe dissera algo, que não prestara muita atenção.
Só perceberá uma porta sendo batida com força. Ao desviar o olhar para onde ouvira o barulho, se viu sozinha naquele ambiente permeado de insetos, plantas, cores, cheiros …. e a alegria gritou alto em seu coração. Aproveitou a oportunidade e começou a explorar febrilmente tudo que lhe despertava a audição, o olfato, o tato, a visão.
De súbito percebeu num canto uma espécie de aquário, aproximou e viu um ser disforme remexendo. O barulho era quase inaudível, mas incomodava. O susto a afastou por um momento, mas a curiosidade venceu o medo. Ao aproximar, abaixou e como os vidros estavam embaçados não era possível ver com nitidez o que se encontrava dentro. Segurou a tampa, na tentativa de abri-la, sentiu um cheiro nauseabundo. Largou-a rapidamente e por um momento tampou o nariz com uma das mãos e a boca com a outra.
Na tentativa de encontrar uma torneira, percorreu o local com os olhos.
Encontrou uma, tomou um gole, sentindo-se aliviada.
Restabelecida do susto, respirou fundo e caminhou ao encontro do mistério. E ao fazê-lo deparou com uma barra de chocolate. Por ironia, esta era a guloseima preferida dela e do pai. Salivou de desejo, não pensou duas vezes, abriu e comeu um pedaço. Sabia que o pai não ficaria com raiva dessa travessura gustativa.
Ao ficar novamente diante do aquário, se deteve. Digladiava consigo mesma: abrir ou não? Deixou a prudência de lado, tomou coragem e destampou. O odor impregnou a sala. Sentiu-se tonta. A visão escurecida.
Mãos tremendo.
Ao ouvir a discussão dos pais, no mesmo instante que a porta se abria, desesperou. Sabia que se fosse pega, seria castigada. Ficaria sem poder usar o celular por uma semana. Na pressa tocou no que estava dentro do aquário e só acordou cinco dias depois, no hospital com as mãos enfaixadas. Ao seu lado se encontrava a mãe com um dos olhos vendados, e do outro, o pai fazia gestos com as mãos e falava de maneira incompreensível com um enfermeiro que segurava um aparelho auditivo.
Pressentindo algo errado no ar, fecha os olhos na urgente tentativa de acordar em outro cenário.
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O conto “Asperezas táteis”, da escritora Rosilene Sousa, faz parte do livro “Do corpo ao corpus”, coletânea organizada por Edna Domenica. Palhoça, SC: Rocha Soluções Gráficas, 2022, pp 71-72.