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Guerra Fria

Cutucadas entre potências vão acabar em diálogo

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Pepe Escobar

Pouco antes de se encontrar com o secretário de Estado dos EUA Rex Tillerson em Moscou, o presidente Vladimir Putin havia dito na TV russa, que a confiança (entre Rússia e os EUA) está “num nível no qual se pode trabalhar, especialmente na dimensão militar, mas não melhorou. Ao contrário, degradou-se”. Ênfase na muito clara ideia de “nível no qual se pode trabalhar”, mas, sobretudo, na parte “degradou-se” –, como no relatório distribuído pelo Conselho Nacional de Segurança no qual os EUA essencialmente acusam Moscou de disseminar noticiário falso.

No auge da histeria do Russiagate, mesmo antes do extremamente controverso incidente químicona Síria e o subsequente Tomahawk Show – muito duvidoso projeto cinematográfico –, qualquer possibilidade de algum reset conduzido por Trump já havia sido fuzilada em combate, tomahawkeada por Pentágono, Capitol Hill e opinião pública desorientada e desencaminhada pela mídia.

Só os Dr.Fantásticos de poltrona ainda insistiriam que seria interessante para os EUA arriscar qualquer guerra quente direta contra a Rússia – e o Irã — na Síria. A Rússia absolutamente já venceu a guerra na Síria, e nos seus próprios termos: impedindo a emergência de um Emirado do Takfiristão.

A ideia de que Tillerson seria homem para lançar um ultimatum ao ministro Sergey Lavrov de Relações Exteriores da Rússia – ou russos estão com os EUA, ou estão com Damasco e Teerã – é risível. Moscou simplesmente não cederá a esfera de influência no Sudoeste da Ásia, que tanto trabalho lhe custou; e não a cederá nem ao governo Trump nem ao ‘estado profundo’ nos EUA. O que Moscou realmente queria saber é quem, em Washington, constrói a política para a Rússia. Agora, obteve a resposta que buscava.

E aí está o Grande Quadro. A parceria estratégica Irã-Rússia é um dos três nodos chave, ao lado da China, na grande história do jovem século 21: a integração da Eurásia, com Rússia e Irã fechando a equação da energia, e a China como locomotiva dos investimentos.

Com isso, os EUA os EUA foram lançados contra o verdadeiro coração da matéria: o Partido da Guerra teme a integração da Eurásia, medo que se deixa ver, inevitavelmente sob a forma de furiosa russofobia.

Mas a russofobia não é monolítica nem monocórdia. Há espaço para alguma dissidência bem informada – e até para variantes civilizadas.

Prova A é Henry Kissinger, o qual, como Acionista Remido, discursou recentemente na reunião anual da Comissão Trilateral em Washington.

A Comissão Trilateral, criada pelo falecido David Rockefeller nos idos de 1974, teve seus membros meticulosamente selecionados pelo Dr. Zbigniew “Grande Tabuleiro de Xadrez” Brzezinski – cuja carreira tem sido dedicação eterna ao tema geral de que os EUA devem prever e impedir que surja qualquer “concorrente” na Eurásia ou, ainda pior, como se vê acontecer hoje, uma aliança eurasiana.

Kissinger é o único curandeiro geopolítico que consegue ser ouvido pelo presidente Trump, um frente ao outro. Tem sido, até aqui, o principal facilitador de um diálogo – e possível reset – entre Washington e Moscou. Já escrevi sobre isso, que é parte de uma reequilibração do poder, na estratégia de “Dividir para Governar” – e que consiste em trabalhar para separar Rússia e China, com o objetivo final de fazer fracassar a integração da Eurásia.

Kissinger sentiu-se obrigado a dizer àquele seu público suposto bem informado que Putin não é réplica de algum Hitler, não tem ambições imperiais, e que descrevê-lo como se fosse algum super-demônio global é “erro de perspectiva e substância”.

Significa que Kissinger favorece o diálogo – mesmo que insista que Moscou não pode derrotar Washington militarmente. Para ele, Ucrânia deve permanecer independente, sem ser integrada à OTAN; Crimeia é negociável. O problema chave é a Síria: Kissinger afirma que de modo absolutamente nenhum se pode admitir que a Rússia torne-se grande player no Oriente Médio (o que a Rússia já é, com Moscou apoiando militarmente o governo de Damasco e comandando as negociações de paz em Astana). Implícita em toda essa conversa é a dificuldade para montar um “pacote” mais amplo a ser negociado com a Rússia.

Agora, comparem Kissinger e Lavrov o qual, citando o próprio Dr. K, distribuiu recentemente um diagnóstico que certamente provocou calafrios em Kissinger: “A formação de uma ordem internacional policêntrica é processo objetivo. É nosso interesse comum de todos torná-lo mais estável e previsível.” Mais uma vez e sempre, se trata da integração da Eurásia.

Putin já delineou o processo, em detalhe, há cinco anos, antes até de os chineses lançarem seu conceito de Um Cinturão, Uma Estrada em 2013. Um Cinturão, Uma Estrada pode sem dúvida ser interpretado como variação ainda mais ambiciosa da ideia de Putin: “A Rússia é parte inalienável e orgânica da civilização europeia e da Europa Ampliada (…). Eis por que a Rússia propõe que se ande na direção de criar um espaço econômico comum, do Oceano Atlântico ao Oceano Pacífico, uma comunidade à qual os especialistas russos referem-se como ‘União da Europa’ e que fortalecerá o potencial da Rússia em seu movimento econômico de pivô na direção da ‘nova Ásia’.”

O Ocidente – ou, para ser mais preciso, a OTAN – vetou a Rússia. E foi isso que, num segundo, precipitou a parceria estratégica Rússia-China e todas as numerosas declinações subsequentes. Essa simbiose, por sua vez, levou a Comissão de Revisão EUA-China de Economia e Segurança a admitir em relatório recente que China e Rússia vivem hoje o que se pode descrever como seu período de “mais alta cooperação [militar] bilateral.”

Prova B: imediatamente depois da fala de Kissinger, para quem Putin não é nenhum Hitler, um teoricamente destacado periódico profissional de diplomacia norte-americana vê-se forçado apublicar ensaio notável, assinado por Robert English da University of Southern California, e Ph.D. em política em Princeton.

Depois de exame cuidadoso, a conclusão inevitável é que o Prof. English conseguiu coisa pode-se dizer simples, mas que ninguém fizera antes dele: com “cuidado e atenção acadêmicos”, ele contradisse “o pensamento e o grupo prevalecentes” e “reduziu a lixo” as posições de virtualmente todo o establishment de política externa dos EUA, hoje dependente químico da russofobia.

A parceria estratégica Rússia-China – casamento das duas principais ameaças que, para o Pentágono, pesam sobre os EUA – não inclui qualquer tratado assinado com pompa e circunstância. Não há como conhecer os termos mais profundos em torno dos quais Pequim e Moscou organizam sua parceria, que tenham sido discutidos naqueles incontáveis encontros Xi-Putin.

É possível, como diplomatas deixam escapar off the record, que haja uma mensagem secreta, enviada à NATO, para fazê-la saber que, se uma das partes daquela parceria estratégica for atacada gravemente – seja na Ucrânia, seja no Mar do Sul da China – a OTAN terá de se haver com ambas. Quanto ao show dos Tomahawks, seria evento isolado; o Pentágono enviou um sinal a Moscou, e Tillerson, em Moscou, garantiu que o governo Trump deseja manter abertos todos os canais de comunicação.

Mas o Partido da Guerra nunca dorme. Neoconservadores sabidamente tombados em desgraça, re-energizados pelo show dos Tomahawk-com-chocolate de Trump, já salivam ante a “oportunidade” de um remix da operação “Choque e Pavor” contra o Iraque, dessa vez contra a Síria.

A cause célèbre do Partido da Guerra ainda é uma guerra contra o Irã, mas estava em conflito com a russofobia obcecada dos neoconservadores – manifesta no Russiagate, atualmente “desaparecido”, mas certamente não extinto. Contudo, a parte realmente obsessiva doRussiagate, para todos os histéricos, é, na verdade, os poderes orwellianos de controle e vigilância que o Estado Profundo dos EUA tem em mãos, como denunciaram Ray McGovern, ex-analista da CIA, e o sentinela-vazador de informações secretas Bill Binney.

Seja qual for o saldo prático, no longo prazo, da turbulenta reunião de duas horas, trilateral, Putin-Lavrov-Tillerson, verdade é que a Russofobia – e seu apêndice, a Iranofobia – não sumirão do espectro geopolítico de EUA-OTAN. Sobretudo agora, depois de Trump ter finalmente mostrado sua verdadeira cara, de “cão domesticado a serviço do dogma neocon.”

As máscaras pelo menos caíram. – Essas incansáveis ameaças de Guerra Fria 2.0 devem ser vistas pelo que são: sinais do medo primal que a integração da Eurásia desperta no Partido da Guerra.

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