Elas ainda estão aqui
Daqueles tempos distantes como ‘Baby, eu sei que é assim…’
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em– Ontem fomos ao cinema ver o que muitos já viram: o filme ” Ainda estou aqui”. E foram muitos os sentimentos que surgiram… Não devido a cenas explícitas de violência. Mas trouxe à tona: a época, os tanques, os carros, os milicos, as famílias e a vida da época… foi como entrar no túnel do tempo… (Taís Palhares)
– Durante 21 anos não usei agenda na bolsa. Como não existia celular para as pessoas comuns, foi uma grande privação de liberdade. (Edna Domenica)
– Eu estava na faculdade de Jornalismo no final dos anos 70. Tínhamos medo dos “ratos” infiltrados na nossa turma. Alunos que também faziam Direito era um sinal que devíamos nos cuidar. Uma colega de turma
cometeu a seguinte pérola: uma das minhas colegas mais próximas era bem ativista, ia nas manifestações, etc… Aí, a outra colega disse bem contente: fulana, dei teu nome pro meu tio que trabalha no DOPS pra ver se não estás na lista deles! (Brígida Poli)
– Que amiga da onça! Ela queria o namorado da amiga? (Edna Domenica)
– No caso, acho que não. Ela não teria contado se tivesse más intenções. Foi ingenuidade, não tínhamos plena noção do perigo que corríamos. (Brígida Poli)
– Eu era aluna da faculdade de Letras que funcionava num dos “barracões” como o da Escola de Comunicação e Artes, na mesma época em que Wladimir Herzog lecionava jornalismo. Anos antes do meu ingresso, todas as faculdades de Ciências Humanas tinham sido retiradas do prédio de alvenaria da Rua Maria Antônia depois do confronto de alunos da USP com os da Universidade Mackenzie. Provavelmente, em 1971 ou 1972, aconteceu algo que ainda não entendi exatamente até agora. Uma aluna da Filosofia aparecia no horário de intervalo lá no barracão de Letras e tentava fazer vínculos comigo e amigas. Lembro-me de que as colegas de turma se esquivavam. E uma delas me falou, em particular, que aquela pessoa não era da nossa faculdade. Alguns dias depois disso, a moça da Filosofia sumiu. Às vezes penso que ela procurava uma informante para futura ação da oposição ao regime ditatorial. Costumavam recrutar pessoas com aparência burguesa. Eu tinha essa cara, porque usava roupas de boutique e sapato ortopédico (o mesmo do uniforme do colegial). Penso que sumiu ao constatar que eu era totalmente inadequada para a missão. Ou será que ela “caiu”? (Edna Domenica)
– O filme apertou meu coração. E voltou uma lembrança do medo do que poderia acontecer comigo e meu marido, em Porto Alegre, em 1978. Hernann fotografava bastante. Fez uma foto do prédio com uma linda fachada histórica do QG militar. Viram-nos tirando a foto e nos levaram para dentro do quartel. Não sabíamos o que fariam. Ficamos um bom tempo lá. Ao final, confiscaram o filme e nos liberaram. Passei um sufoco, porque meu marido, cidadão alemão, não chegou a se dar conta do risco que nós corremos. Recentemente, voltei lá e fotografei o tal prédio do QG. Agora pode! (Clara Amélia de Oliveira)
– E tem gente que prega a volta de um tempo em que as pessoas eram detidas à toa… Dizem:” ah, eu não ia ser preso porque não ia fazer nada de errado…” (Brígida Poli)
– Éramos suspeitas por dirigir um Fusca vermelho, por estudar ou lecionar em universidades. Por isso teve cenas que me deram falta de ar, a exemplo dos closes nos personagens torturadores. O que normalizou minha respiração foram as cenas na praia e as músicas. (Edna Domenica)
– Linda trilha sonora! A canção do Erasmo é de rasgar o coração… (Brígida Poli)
– Sim. É muito adequado ao contexto atual o contido nos versos da letra da música (composição de Roberto e Erasmo Carlos) ” É preciso dar um jeito, meu amigo”: “Mas estou envergonhado/Com as coisas que eu vi/ Mas não vou ficar calado/ No conforto, acomodado/ Como tantos por aí” Como Caetano Veloso, tive que aceitar e me resignar perante aquela realidade: “Baby. /Eu sei que é assim”. As lembranças das injustas resignações permanecem ao lado das imagens aterrorizantes do passado. Pois é baby, somos memórias que ficaram. “Baby, Baby, há quanto tempo!”. Elas ainda estão aqui. (Edna Domenica).
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Coletivo de autores: Brígida Poli, Clara Amélia de Oliveira, Edna Domenica e Taís Palhares