Café, o mendigo
Criança de beira de fogo morre já velho de frio
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emA única praça da cidade do Entorno – vamos manter o nome sob reserva – era salpicada por alguns bancos, a maioria quebrada. Nada de bustos de autoridades esquecidas ou de laguinho com chafariz enferrujado. O único monumento, se é que podemos chamar assim, era o velho Tomás, que quase ninguém conhecia pelo nome. Todos o chamavam de Café, pois o dito cujo nunca largava a gasta garrafa térmica.
Dependendo dos ânimos daquela gente, Café causava pena, repulsa ou medo. Nunca simpatia, nem mesmo pelos mais antigos, que haviam dividido as brincadeiras nos longínquos tempos de criança. Diziam que Café passara alguns anos na prisão, outros juravam que foi no hospício, tamanha a aparência de maluco.
Se possuía ou não parentes, ninguém sabia ao certo. Talvez até tivesse um ou outro, mas nenhum fazia alarde de tal vínculo sanguíneo. Café vivia sozinho, sobrevivia às custas de míseras moedas atiradas numa enferrujada lata de goiabada. Graças a essa esmola, todos os dias passava na padaria da esquina. Comprava alguns pães e, quando muito, uma ou duas fatias de mortadela. Enchia o bucho.
Fazia o café em uma pequena fogueira, que também o esquentava nas noites frias. Batizava o líquido preto com uma branquinha para, talvez, esquecer das agruras de outrora. Esse hábito, aliás, o fazia mais falante e, não raro, era cercado por curiosos, todos desejosos de escutar mais uma história do mendigo.
Naquela noite, que a meteorologia prometia geada, meia dúzia se acomodou ao redor do Café. Não demorou, o maltrapilho começou a tagarelar sobre um antigo crime ocorrido no vilarejo ao lado. Um sitiante, que teria ficado louco, assassinara toda família a machadadas, poupando apenas o filho mais novo, ainda bebê. A verdade, segundo diziam, é que o tal homem havia simplesmente se esquecido do filho mais novo, que dormia tranquilamente no pequeno cesto ao lado do fogão a lenha.
Café gostava de observar os olhos arregalados da sua pequena plateia. Fazia pausas estratégicas, enquanto se servia de mais um gole da mistura na garrafa térmica. Sorria aquele sorriso de raros dentes, todos apodrecidos. Os poucos ouvintes que conseguiam encará-lo ficavam ainda mais assustados. Café parecia adorar essa situação. As pausas se tornavam ainda mais longas. Ele se deliciava com cada expressão de terror das pessoas.
Logo após ouvirem o desfecho daquele banho de sangue ocorrido há décadas, todos voltaram para o aconchego de seus lares. O pobre Café, diante daquele fio de fogueira, tentava se manter aquecido com mais um gole. O moribundo perdeu os sentidos. Não se sabe se sonhou com o tempo em que ainda dormia em um cesto aquecido pelo calor do fogão a lenha. O certo é que o velho Café não resistiu àquela geada. Ninguém reclamou o corpo, que foi enterrado como indigente.