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Operando milagres

De cara nova, Base fecha a ‘Enfermaria 6’

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Eduardo Balduíno - Especial para Notibras

Tenho uma longa carreira de repórter, especialmente cobrindo os acontecimentos locais, da Editoria de Cidade, mas também em outras unidades da nossa diversificada federação – diversificada, mas igualmente maltratada no que tange aos serviços públicos que cabe ao Estado prestar, saúde, saneamento básico, educação – todos com ações e resultados transversais com a saúde pública. Mas essa narrativa, a pedido do meu querido José Seabra, não é jornalística. Ele me pediu que compartilhasse com seus leitores minha experiência como paciente, primeiro, em 2017, do Hospital de Base de Brasília, e agora, do Instituto do Hospital de Base de Brasília.

Em 2017, sofri um enfarto agudo do miocárdio e depois dos primeiros socorros fui para o Pronto Socorro do Base. Mais recentemente, no dia 24 de junho, me internei no PS do Instituto Hospital de Base para retirar um câncer do cérebro – vou poupar o uso de termos técnicos, até para não me enrolar e induzir os leitores em erros e dúvidas.

Então foi isso: um infarto e um câncer – ainda em tratamento, em exatamente dois anos e tratados no mesmo estabelecimento de saúde e seus profissionais – com glamour real, não o das séries de ttelevisão.

Quando dei entrada no PS do Base por causa do infarto, havia uma crise administrativa agravada pela discussão da transformação do HDB em instituto. Aqui é importante uma ressalva. Desde quando Brasília adquiriu sua autonomia política, vieram no pacote as crises que todas as cidades brasileiras têm na sua administração. Então, a crise na saúde pública de 2017 não foi a primeira – embora o que eu vivenciei e estou vivenciando esses dias me deu um alento.

O que tornava qualquer diagnóstico e procedimentos advindos difíceis à época era o grau de politização do debate já em curso sobre as transformações pelas quais o sistema de saúde demandava. UTIs, como a coronária, onde fiquei duas semanas, eram utilizadas para realização de verdadeiras assembleias corporativas – até hoje, com os claros sinais de que as coisas estão mudando e muito rápido e muito para melhor, há quem seja contra; mas é cada vez menos esse tipo mesquinho e egoísta de gente, que só pensa em defender sua medíocre “estabilidade”. Médicos (?) mesmo que acham que o paciente não tem direitos porque, afinal, “isso é um hospital público, o que você está pensando?”, como me foi dito no primeiro dia no PS, desta vez.

Esses fizeram residência na “Enfermaria número 6”, relato precioso do extraordinário novelista e contista russo Anton Tchekhov. Ele o escreveu com pouco mais de trinta anos em 1892, sobre o desenrolar da existência de um médico, Andréi Iefimitch, administrador de um hospital numa cidadezinha remota da antiga Rússia czarista, e suas visitas à Enfermaria nº 6, o pavilhão dos loucos onde ele trabalha enquanto medita sobre a vida e sobre a morte.

A Enfermaria 6 é parte quase invisível da unidade estatal de saúde cujo único objetivo era manter o doente ali, sem o risco de cura; é apenas um hospital público que, se ficar sem seus pacientes deixa desempregados os profissionais formados com o orçamento público.
O inusitado se dá quando o médico desenvolve interlocução com um paciente da Enfermaria. Este tenta mostrar ao já impassível doutor que há dor, que há sofrimento justo onde deveria haver conforto, a busca da cura. E esse diálogo se estende até o momento em que o status quo ameaçado interna, na própria Enfermaria 6, o seu ex-chefe: o diagnóstico é a humildade e a dignidade com que o médico passa a tratar seu paciente; e a gentileza e carinho presentes em qualquer situação, de uma simples aferição de temperatura, a um delicado procedimento cirúrgico.

O Instituto Hospital de Base de Brasília está fechando suas enfermarias com a marca do número 6.

Repito: estou relatando uma experiência pessoal; não entrevistei dirigentes, médicos, enfermeiros, nem outros pacientes. Convivi com eles por força de uma doença. Não se trata de uma experiência de antropologia social.

Em 2017, infartado, vi meus filhos disputando a sobra de uma cadeira de plástico quebrada para passar a noite no Pronto Socorro me acompanhando; situação vivida por todos os acompanhantes. Agora, no mesmo PS, espreguiçadoras ao lado de praticamente cada leito. Corredores ainda ocupados, mas enfermeiros comentando, com sorriso incontido que daqui a pouco isso também vai melhorar. E aqui está o que mais me chamou a atenção: os servidores estão felizes por poder oferecer um tratamento melhor aos pacientes. E os pacientes demonstram seu reconhecimento.

Tudo dói. O câncer, o meu, pressiona o nervo ótico e dói muito. Mas as mudanças não passam desapercebidas. Equipamentos novos, novos tipos de instrumentos para procedimentos até então não realizados ali – tudo é celebrado pela equipe de saúde, médicos, radiologistas, enfermeiras.

Um passo de cada vez, não é mágica; não estava tudo pronto e agora só estão ligando na tomada. Notadamente porque a energia que está alimentando essa quebra de paradigma que começa a se processar no atendimento público de saúde do DF vem da crença de que é assim que tem que ser: corresponda com a mesma humildade com que o paciente lhe deposita a vida em suas mãos e o processo de cura terá iniciado.

Como me disse alguém lá, ainda no corre-corre do Pronto Socorro: “Seu Eduardo, o que está acontecendo aqui está sendo muito bom para o usuário. Eu é que vou ter que rever essa cultura de estabilidade no emprego”.

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