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De Lisboa, revolução de embriaguez, a Paris, paixão e volta ao Brasil

No final de 1976, por ter a Revolução Portuguesa encruado, a festa móvel lisboeta terminado por excesso de birita e esbórnia, e os jovens universitários de Évora, numa crispação conservadora, passado a hostilizar ostensivamente o brazuca que ocupava o lugar de um senhor professor doutor da terra, Tiago sentiu uma gastura de criar bicho e retornou a Paris.

Para ele, era o equivalente a ir pra casa. Com algumas diferenças. A primeira, tinha casa mas não tinha lar, chegava tarde para salvar seu casamento – e, no fundo, não queria; sua mulher – chamada doravante de A Esposa – já havia retornado ao Brasil e, para falar a verdade, nenhum dos dois sentia muita falta um do outro. A segunda, estar solteiro na capital francesa era muito melhor que estar se divorciando em São Paulo. Então ele foi em frente, sendo recepcionado por algumas francesinhas que havia conhecido social, política e biblicamente em Lisboa.

Em resumo, estava sendo um agradável, ainda que um tanto melancólico, fim da temporada europeia. Mas alguns amigos o julgaram deprimido pela iminente dissolução de seu casamento (não estava, sentia tristeza era por ter acabado a festa móvel lisboeta) e trataram de arranjar programas para diverti-lo.

Um desses amigos – doravante chamado de O Namorado – o arrastou para uma visita a sua namorada francesa, Marie.

– Você vai gostar de conhecer Marie – disse O Namorado. – É uma mulher muito especial.

Tiago deu de ombros e foi.

Ele entrou, com O Namorado, num apartamento de quarto e sala. Havia poucos móveis, livros em desordem, e esculturas indígenas latino-americanas e africanas nas prateleiras; um disco de Mercedes Sosa estava jogado sobre o carpete. Era o ambiente típico de uma universitária francesa solteira de esquerda – o nicho ecológico padronizado das moças que o haviam devorado em Portugal e, agora, prosseguiam com o canibalismo em Paris.

E, por último, mas não menos, Tiago conheceu Marie. Estava com uma calça jeans, uma blusa e um poncho peruano – uniforme de esquerdista. Não era especialmente bonita. Mignon, de seios pequenos e pouca bunda, tinha o nariz aquilino e grandes olhos castanhos que o fizeram pensar em uma corujinha. Mas tinha um sorriso deslumbrante e deuses, a voz! O francês de Marie era pura música, nada a ver com o nasalado edithpiafesco de tantas parisienses ou com o tatibitate sou-burrinha-mas-uma-delícia brigittebardoresco das mais gostosas. Era uma corrente melodiosa de sons que o envolveu e o deixou louco de desejo.

– E Portugal? – perguntou Marie, com um sorriso gentil.

Era provavelmente uma pergunta retórica, merecedora no máximo de uma resposta do tipo “Adorei, morar lá foi uma experiência incrível’, mas Tiago lançou-se em uma análise política brilhante. Raras vezes fora tão inteligente e sedutor, neurônios e hormônios trabalhando juntos são uma pauleira. Entremeava o discurso político com episódios divertidos, que a faziam rir deliciada. Foi uma operação de conquista casanovesca, leve e bem-sucedida; as mordidinhas no lábio inferior de Marie e o roçar deliberado de suas coxas uma contra a outra indicavam que a umidade embebia suas partes baixas.

Em seguida a conversa se generalizou, efervescente como um champanhe, dominada pela voz harmoniosa e pela risada cristalina de Marie. Ela e Tiago flertavam escandalosamente, por cima dos chifres em formação de O Namorado. Meia hora depois, Tiago despediu-se dos dois, deu um beijinho no rosto de Marie que tocou de leve a borda de seus lábios e foi embora. Os dois trocaram um olhar cheio de promessas, o suficiente para Tiago pensar, ao se ver sozinho, “Vou traçar, claro; e poderia me apaixonar por essa mulher”.

O encontro seguinte, uns 15 dias depois, foi na festinha de despedida de O Namorado, que regressou ao Brasil. Tiago e Marie devoraram-se com os olhos, mas não conversaram a sós, para não dar bandeira. No final, ele aproximou-se da corujinha e falou baixinho:

– Tenho um disco de canções do Alentejo, a região de Évora, onde dei aulas de Sociologia e Economia. Acho que irias gostar. Posso levar na tua casa?

– Passa lá na sexta, às 7 da noite.

Na sexta, pontualmente, Tiago tocou a campainha do apartamento de Marie. Ouviram o disco mas não prestaram a menor atenção, o tesão dominava tudo. Só que ele deu pra trás, sentiu-se um crápula por estar seduzindo – não, por ter seduzido – a namorada de O Namorado e foi embora antes das 21h. Ia pegar o metrô, a uns cinco quarteirões. Mas foi andando bem devagarinho, sentia que algo iria acontecer.

O “algo” foi um leve toque em seu braço e uma voz acariciante:

– Tiague…

Voltou-se e viu Marie, ainda ofegante, viera correndo para encontrá-lo.

– Quero te falar de desejo – convidou a francesinha

Em silêncio, ele a beijou. Primeiro suavemente, depois mais forte, e voltaram abraçados ao apartamento. Transaram a noite inteira, num ritmo perfeito, que a fez delirar de prazer. E conversaram. Ela confirmou que havia se envolvido à primeira vista, a ponto de brigar com O Namorado por trazer um estranho à casa dela, sem a sua autorização. Um discurso nascido da tentativa de esconjurar o inevitável, o que não tem juízo.

Este conto poderia terminar com essa noite gloriosa, inesquecível. Ou prosseguir por uma semana de lua de mel, seguida por encontros casuais arrebatadores. Mas não, os dois idiotas decidiram “assumir a relação”. Isso significava frequentar os amigos da bolha brasílico-parisiense. Quando iam visitá-los, A Esposa e O Namorado se materializavam ao lado dos dois, com uma expressão de tristeza e censura nos olhos, dando suspiros de resignação. Pobres dos amigos, transformados em cúmplices, obrigados a fingir que não viam o quatrilho nem ouviam os suspiros sofridos, forçados a encarar tudo numa boa…

Em tais circunstâncias, a magia se desvaneceu, o desejo azedou. Passados três meses do encontro mágico, o casal que nunca deveria ter sido separou-se; poucos meses depois, Tiago regressou ao Brasil.

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