Palavras têm impacto. E machucam. Antônio comprovou isso no dia em que presenciou um raivoso bate-boca entre dois homens que estavam em lados opostos da rua. De súbito, o viado passou zunindo por ele, atravessou a rua e cravou os chifres na barriga do cara na calçada em frente; nem meio segundo depois, o corno fez o mesmo, e as pontas do C golpearam a pança do sujeito perto de Antônio. Em seguida, os dois xingamentos desfizeram-se no ar, letra por letra.
Machucados e assustados, os dois homens desistiram de brigar e cada um seguiu o seu caminho. Ainda sem acreditar no que presenciara, Antônio os imitou. Em casa, ligou a TV, para ter notícias do fenômeno dos palavrões condensados (PCs) – termo que adotou, considerando-o mais preciso que os “palavrões aéreos” utilizados por toda a mídia mainstream.
Antônio e os demais espectadores souberam que a coisa ocorria por todo o país. Que o impacto dos palavrões diminuía (era óbvio) conforme aumentava a distância entre os indivíduos; que, numa troca de impropérios cara a cara, o golpe podia quebrar uma costela; mas ficou nisso.
No dia seguinte, a cobertura foi muito mais minuciosa. Equipes de externas mostraram que era muito mais perigoso xingar quem não dava o troco, pois, depois de atingir o agredido, a palavra retornava e atingia com força ainda maior o agressor. Os repórteres comprovaram também o efeito de diferentes palavrões, realçando que o efeito na vítima dependia do formato da letra inicial. Nomes feios começados por V ou C, por exemplo, tinham pontas que, além de golpearem, quase perfuravam a pele. Já no bom e velho filho da mãe (e variantes mais pesadas), o único elemento contundente era a haste maior do F. A essa altura, nas redes sociais, já havia listagens dos termos mais aptos a machucar. O vil, monossilábico e tão letal quanto viado, ressurgiu com força total.
As emissoras também entrevistaram especialistas: sociólogos, etimologistas, que são especialistas no estudo da evolução das palavras; compositores de funk, que dominam como poucos os termos chulos; e religiosos fundamentalistas, que viam na coisa toda um castigo divino para os boca-suja. Nenhum deles apresentou uma hipótese convincente sobre as causas do fenômeno. A que mais agradou Antônio foi oferecida por um sociólogo: na sociedade desbocada que era a brasileira, a massa da linguagem de baixo calão atingira um ponto crítico, a partir do qual os palavrões passaram a condensar-se no ar. (Talvez essa referência tenha levado Antônio, adepto, como mencionado, do termo “palavrões condensados”, a preferi-la.)
Paralelamente, porta-vozes da malandragem brazuca resolveram testar os limites do ricochete. A ideia era ofender um desafeto e depois fugir a toda, ou se esquivar, ou se lançar ao solo. Todos esses aprendizes de malandro se lascaram. Os que correram foram golpeados por trás, nos rins, e tombaram sem fôlego, peixes fora d’água; os que tentaram driblar a ameaça verificaram, dolorosamente, que os PCs eram mais ágeis que uma mescla de Garrincha, Pelé e Messi e tinham um impacto maior que um chute de Cristiano Ronaldo; e os que se lançaram ao solo constataram, mortificados, que os nomes condensados não tinham um pingo de fair play: em vez de esperarem a futura vítima levantar, eles pairavam sobre ela, como aves de rapina, e em seguida arremetiam com tudo, quase quebrando-lhe as costelas.
A iniciativa seguinte foi um salve do crime organizado, que logo se difundiu por toda a pirâmide social: era preciso bater sem ofender.
Tarefa difícil para o brasileiro (vá lá, o brasileiro médio), personagem de órgãos trocados: é um homem cordial, que pensa com o coração – ou seja, descarta a mente e vai pela estrada da vida de explosão emocional em explosão emocional – e fala com o reto, quer dizer, só fala bosta.
O fenômeno durou menos de uma semana, como se os PCs permitissem à massa de obscenidades verbais na sociedade desbocada vazar pelo ladrão, caindo para um nível abaixo do ponto crítico. Ainda assim, o número de ofensas chulas diminuiu por toda parte, e há relatos de brigas nas quais um indivíduo aproxima-se do outro, sorri gentilmente – e baixa-lhe o braço.
Em resumo, ainda não somos uma Dinamarca, epítome de sociedade civilizada. Estamos longe disso, é verdade; mas progredimos a cada dia.