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Depois da dor, uma garrafa, um brinde, porque a morte faz parte da vida

“Que a terra te seja leve” era a maneira que ela tinha de desejar um arrependimento ao morto que, depois de uma vida inteira de ações egoístas, recolhia-se ao seu eterno sepulcro.

Dizia ela: “Sepulcro”, porque todo carneiro tinha uma pedra a cobri-lo, após a descida do caixão, banhado pela pá de cal.

Abandonado o cemitério, em casa, não conseguia parar de pensar em como seria ao chegar a sua hora.

Sentimento estranho: ficar ali deitada – inerte aos olhos humanos –, fria, vestida com a roupa que alguém escolheu para a última saída de casa. Talvez, dependendo de quem “a” amasse (ou não), escolheria o melhor vestido e, com certeza, não levaria joias, bijuterias, meias, sequer sapatos.

Então, para que comprava tantos sapatos?

Quem teria a audácia de acompanhar sua última caminhada e ainda balbuciar: “Que a terra te seja leve”?

Ficou a pensar em quem poderia repetir a frase que ela cunhara para si… Para seus inimigos…

Vieram-lhe alguns nomes…

Os primeiros a serem lembrados foram os desamores, que ofereceram promessas e, depois, não as cumpriram; em seguida, os competidores profissionais que compartilharam caminhos e que, muitas vezes, colocaram pedras para que tropeçasse; ou falsos abraços, com os quais sussurravam ideias fadadas ao fracasso, abusando de sua boa-fé.

Verdade… Em algum momento, fora pessoa de boa-fé. Quase não podia acreditar no que pensava, de tão longínquas que estavam à lembrança e a ingenuidade. No entanto, somos ou fomos ingênuos e virgens em algum momento da vida.

Permanecia sentada, folheando na memória cada ano, com a avidez de um investigador policial, a fim de descobrir culpados de crimes contra si.

Vasculhou a família – sempre há um canalha! –; partiu para a vizinhança – algum fofoqueiro? –; buscou entre amigos recentes, mas nada encontrou.

Deveria relaxar para se considerar uma boa pessoa. Logo, sua frase morreria consigo.

Levantou-se para pegar uma cerveja.

A mente continuava a tagarelar.

Interessante… Culturas…

Na América, costuma-se discursar sobre o defunto – obviamente, ninguém sobe à tribuna para dizer o quanto o morto não prestava –; também se comemora, de certa forma, com comes e bebes, ao dizer adeus.

No Oriente, choram e lamentam o nascimento já que aí começam as privações. O povo oriental é sábio!

Afinal, ao morrer, entende-se que a missão deve ter sido concluída. Desse modo, festa é razão de cumprimento do dever.

No Brasil, porém, o tropicalismo surreal faz com que alguns comemorem o nascimento e a morte (dependendo de quanto vão herdar); outros choram o nascimento e a morte, tendo em vista que a gente brasileira não desapega – e se mostra ciumenta, por pior que seja o sujeito.

Em chegadas e partidas… Quem pode prever o por quê?

Ela volta para a sala com a garrafa de cerveja. Senta novamente na poltrona, não percebendo que anoitecia e a sala começara a ficar na penumbra. Pensa: “Como me sentiria enclausurada!”.

Sabe que o apartamento é pequeno, ainda assim abre a janela e o sol entra quando ela quer; mas ali, num caixão – onde as medidas são exatamente o necessário para caber o corpo –, ao fechar a tampa, o escuro vai aparecer. E o ar? Quanto tempo duraria o ar se não se respira?

Deve durar para sempre, então… Ar não faltará!

Entretanto, e se alguém balbuciar: “Que a terra te seja leve”?

Ela para petrificada e promete: “Vou ouvir… Só não sei se poderei identificar. Terei que reconhecer a voz e aí, prometo que vou assombrar”.

Quem sabe se esse negócio de assombração é mesmo real? Uns dizem ser coisa de Stephen King. Em todo caso, que ninguém se aventure, porque, em vida, vou perceber e aí sim, assombrarei até meu último suspiro.

Mulher austera, cobradora de seus erros na busca por perfeição, incomodada com a ideia de passar por tal situação. Agora lhe vem à mente outra questão…

O que ainda não se sabe bem é sobre a decomposição do corpo… se dá coceira.

Toda vez que um mosquito pica, ou qualquer outro inseto, pode provocar alergia. Hum… Esses vermes são os mesmos que dão na lata do lixo ou são como o bicho-de-pé, que coça e come a carne sem aparecer?

Coceira é coisa que incomoda, mas qual defunto reclamou?

Num momento de lucidez kafkiana, supõe ser cremada e, assim, ficar longe dos comentários para não ouvir o que dissera a alguns.

O fogo lava a alma, é purificador.

Sem coceira, sem odor, nem ficaria muito tempo no escuro e em espaço apertado. Uma saída honrosa para o seu medo de ser considerada como mais um personagem de terror.

Percebe a noite dominando. Levanta mostrando cansaço. Acende a luz e liga a televisão.

De volta à vida, esquece o defunto enterrado.

Também esquece os seus medos em sua batalha travada.

Mergulha no noticiário avisando que o mundo continua com suas guerras, suas conquistas, atrações e fascínios.

Então, ergue a garrafa gelada e brinda:

“Que a terra te seja leve” também faz parte da vida…

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