O brinco de Nonói
Depois da experiência, restou no bolso o bilhete de despedida
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“Sempre tive a impressão de que Nonôi já tinha o brinco ao nascer. Não um par: um brinco apenas; na orelha direita; um objeto primitivo”.
> Sexta-feira
Na retina dos olhos do homem balança o brinco da moça. O homem se abala e se fascina: imagem-balangandã de forma e movimento. O brinco da moça inquilina da retina por uma fração de segundos introduz a dimensão do tempo.
O homem está estático.
A noção de tempo vem do passado e introduz certa nostalgia.
Chove, chove muito e a água invade as ruas de asfaltos perfeitos, os quintais, os prédios públicos, as igrejas e as casas de outros homens.
A casa está ilhada e as imagens fluem à luz de velas. Dentro da casa, boiando sobre a mesa, o homem traz na retina a imagem da moça que balança, que balança.
O brinco da orelha da moça penetra a retina do homem-olhos que espera a chegada das águas e do futuro.
O homem-balangandã quer um conceito; um método; um sistema positivista capaz de justificar toda a razão contida na humanidade.
Não consegue e nem gera nova formulação.
Agora, só existe uma ponta de nostalgia que invade o coração do homem, um homem-circunstância.
“E todo o conhecimento apreendido? e todo o tempo experimentado? e todo o leite bebido? e todo o pão ruminado?”
O homem-poesia perambula nostálgico pelo cômodo da velha casa.
A chuva aumenta e o isolamento também.
A madrugada chega e o homem se transmuta em homem-expectativa.
Virá o dilúvio? Haverá a invasão das águas?
Luz já não há, além do fino lusco-fusco parido pela última vela.
O homem-energia acende o último cigarro, reza o último terço e espera o derradeiro milagre.
Na retina dos olhos do homem balança o brinco da moça, que dança, que dança….
> Sábado
Nonôi delirara entre goles de conhaque:
“(…) o cinema é um veículo da transparência da luz impressa nonegativo; já o vídeo privilegia a opacidade, daí as imagens em dissolução, que procuram reconstruir o modo de apreensão das imagens, como na Guerra do Golfo ou no Afeganistão…É isso aí, cara, a luz vem de dentro, do calor dos próprios objetos.”
Tive sempre a impressão que Nonôi já tinha o brinco ao nascer.
Não um par: um brinco apenas; na orelha direita; um objeto primitivo talvez. Coisa de uma tribo perdida no coração da Oceania. Os aborígines eram a obsessão da ruiva:
“Imagine viajar pelo deserto da Austrália e aprender os segredos daquelas tribos esquecidas pela civilização? As pinturas, os rituais, aquela terra, aquela gente é muito estranha e incrível, maninho! Coisas de tradição e de tecnologia ao mesmo tempo, tudomisturado… É loucura!”
Nonôi sabia das coisas. Meio maluquinha, minha amiga, mas sintonizada com o mundo dos mares, dos continentes passados e futuros, e, é claro, com as manifestações que a história esqueceria.
“Eu tenho fascínio pelos brincos e balangandãs, pelo movimento, pelo sincronismo que eles executam na dança, num ritual de purificação ou de cura, num movimento de cabeça sugerindo um ritual de aproximação exótica ou de namoro.”
Nonôi era sempre movimento. Em cada olhar. Em todas as perspectiva que eu buscava com minha câmera, o detalhe marcante era a imagem dentro do quadro, a ação, as pessoas em movimento.
> Domingo
“Não existem alternativas para o movimento, maninho! As ditaduras da circulação, das justaposições, dos labirintos tomam conta de tudo num mundo pós-moderno.”
O brinco estava em cima do bilhete sobre a mesa da pequena sala:
“Tô saindo fora, maninho. A estas horas já estou na Austrália. Vou ao encontro de meu coração.”
Com a partida de Nonôi mudei de cidade.
Voltei a viver de imagens roubadas nas ruas e aprisionadas na minha retina de passageiro. Desde a partida de minha amiga ruiva, circulo pela vida explorando ao máximo a carga dramática das cores saturadas como se montasse sempre um contraponto de luz e sombra, de claro e escuro, em interiores e exteriores ao mesmo tempo.
Sigo como se habitasse uma casa ilhada à espera da subida das águas.
E um não-tempo sobreposto por imagens exageradas, de pessoas que surgem como espectros de luz e sombra, detalhe e panorâmica, borrões que escorrem perdendo a cor pelas praças, ruas e escritórios de trabalho.
O espaço urbano já não pertence mais às pessoas; os veículos dominam tudo, as embarcações, os semáforos, o trânsito, as pontes, os viadutos, os aeroportos e as estações. Fujo de lugares para não-lugares.
Talvez, por teimosia ou uma espécie de talismã, guardo no bolso da velha jaqueta jeans o bilhete de despedida de Nonôi.
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