Curta nossa página


Intelecto moralista

Depois de Toba, vizinhos da direita e esquerda procuram Quincy Fonda

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo* - Foto Produção da Divisão de TI/Notibras

Famoso contador de histórias, causos e similares, meu avô paterno, Aristarco Pederneira, foi um grande mentiroso. Um dos mais adoráveis que já conheci. Suas mentiras eram sábias, desinteressadas e até românticas. Abominava a violência. Por isso, nem em sonho lembra um ex-presidente brasileiro. A parecência com o mandatário era mínima: ele também era exímio em evitar protagonismos nas situações de prováveis conflitos com os seus e, principalmente, com os outros. Cognitivamente, quero dizer intelectualmente, longe de ser alcançado por aquele que se diz o maior defensor da democracia desta década, Aristarco criava fatos com a facilidade de um bêbado no cio.

Normalmente com o pé esquerdo à frente, brigava para que os fatos não se transformassem em factóides próximos da chacota. Igual ao citado mandatário, tinha pouco crédito no item convencimento alheio, mas pelo menos sabia perder e primava pela simpatia e pela defesa da liberdade dos interlocutores, aos quais sempre dava o direito amplo e irrestrito de discordar de suas mirabolantes narrativas. Como jamais reclamou da falta de impressão do que dizia, acho que a maioria dos relatos o teve como astro principal. Até onde sei, contar histórias na terceira pessoa foi seu golpe mais conhecido. O dele pelo menos sempre dava certo.

Por exemplo, como acreditar que o vizinho da casa da esquerda não era o próprio. Segundo o velho, o vizinho da direita tinha um cachorro da marca vira-lata e que respondia pelo nome de Toba. Com pouco mais de sete anos, o filho caçula do cidadão sem nome, passava o dia inteiro enchendo o saco do Toba. Era Toba pula, Toba pega o pau, Toba finge de morto, Toba pega o osso. Dia após dia, a mãe do moleque dizia que se ele não mudasse os modos acabaria doando o Toba. O garoto não parou: Toba rola, Toba finge de morto, Toba isso, Toba aquilo. Um dia o pai chega em casa e pergunta ao fedelho pela mãe. Chorando, o menino diz: Mamãe foi dar o Toba para o vizinho da esquerda.

O pau quebrou, mas meu avô não abriu mão do Toba da vizinha. Como não há história sem moral, devo recomendar à turma da direita o máximo de cuidado com o toba que se tem em casa. Bobeou, dançou, isto é, os da esquerda vão lá e créu. É uma questão de intelecto. Deixando o toba alheio de lado, a sabedoria portuguesa do pai do meu pai não se limitava às banalidades. Graças a seus conhecimentos da vida, meu tio mais novo ficou casado até a viuvez. Bastou uma frase curta e uma tapinha nas costas para ter a certeza do dever cumprido. Lembro como se fosse o dia em que o tio adentrou a residência do genitor para comunicá-lo que estava em vias de se desquitar da esposa. Na época não havia divórcio. Meu avô quis saber a razão: “Faz seis meses que minha mulher não fala comigo”. Dois segundos de reflexão e veio a resposta. Pense bem, menino, mulher assim é difícil de arrumar”.

No subúrbio carioca do século passado, um mínimo de inteligência significava o máximo de respeito. Aristarco Pederneira era do tipo que não refugava qualquer convite. Passou a pensar melhor depois que um de seus melhores amigos o convidou para estrelar um reclame (hoje comercial) de uma nova marca de biscoito caseiro. Texto pronto, gravador cassete em punho, luz, câmera, ação: “Gostaria de informar aos familiares e amigos que sou o mais novo garoto propaganda do Cookie Piska. Eu provei e gostei. Vocês também vão gostar. Sintam o gostinho do meu Cookie Piska. Ele é gostoso e cheiroso. Quem come do meu Cookie Piska sempre quer mais. O tempo fechou. O tal amigo até hoje não sabe onde está seu Cookie Piska.

Pedindo vênia ao rei Roberto Carlos, Aristarco Pederneira nunca deixou de ser o cara. Foi com ele que assisti Jonny Weissmuller, o maior Tarzan dos cinemas, pegar a Jane com seu cipó atrás da moita. Também ao seu lado tive o prazer de acompanhar enlatado estrelados por uma família ímpar de artistas norte-americanos. Mestre dos faroestes e dos dramas, Henry Fonda, o patriarca, participou de mais de 50 filmes. Jane Fonda, a mais velha, continua na ativa aos 86 anos. Peter Fonda, o caçula, partiu em 2019. Ainda tem a neta Brigitte Fonda. Falta o irmão do meio, com o qual Hollywood e o mundo perderam o contato faz anos. Paciência. Por falta de intelecto, o que posso dizer? Quincy Fonda!

*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.