O tema das chamadas notícias falsas, ou “fake news”, ganhou visibilidade desde o ano passado, atraindo a atenção de autoridades, especialistas, organizações da sociedade e parlamentares. Já há mais de 20 projetos tramitando no Congresso Nacional sobre o tema.
Nesta terça, 19, a Câmara dos Deputados realizou uma audiência pública, denominada “comissão geral”, para discutir essas propostas. Nas dezenas de manifestações, sobraram divergências sobre se o tema deve ou não ser objeto de legislação.
Boa parte dos projetos apresentados propõe regras de dois tipos: ou criminalizam o usuário que produz ou difunde as chamadas “notícias falsas” ou impõem às plataformas digitais (como Facebook, Google ou Instagram) a obrigação de fiscalizar o conteúdo circulando no seu interior e sujeita essas empresas a multas caso não removam mensagens falsas ou consideradas prejudiciais.
Em discurso lido na reunião de hoje, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) se posicionou entre os que defendem a necessidade de estabelecer regras sobre o assunto. “Se as pessoas estão sendo manipuladas por notícias falsas, precisamos encarar este fenômeno e regulá-lo”, pontuou. Em seu texto, Maia convocou os presentes a debater uma “legislação de consenso” sobre as notícias falsas e o discurso de ódio na internet.
O deputado Celso Pansera (PT-RJ), relator de alguns projetos relacionados ao tema, informou que deverá apresentar seu relatório nas próximas semanas. O parlamentar não adiantou o teor do parecer, mas citou como princípios a não responsabilização das plataformas e o uso da legislação atual vinculada a conteúdos online. Ele citou como exemplos o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) e os chamados “crimes contra a honra” previstos no Código Penal, como calúnia, injúria e difamação.
Alguns especialistas presentes à audiência defenderam mudanças na legislação. O professor de marketing digital da faculdade ESPM Marcelo Vitorino sugeriu alterações nos crimes contra a honra para prever situações na internet. “Crime contra honra em ambiente virtual tem que ter outra qualificação. No Código Civil não há correção para o dano moral”, lembrou.
O professor de direito da Universidade de São Paulo Daniel Falcão defendeu a atualização da legislação eleitoral, que já lista como crime a difusão de conteúdo “sabidamente inverídico” em propaganda sobre um candidato que possa influenciar o eleitorado. “Temos que atualizar este artigo, colocando a possibilidade da prática na internet e não só na imprensa, TV e rádio. Ao mesmo tempo podemos prever que só não são os atores do jogo eleitoral mas também o eleitor que tem que estar de olho e não repassar notícias falsas”, recomendou.
Críticas – Já outros participantes se manifestaram contrários à aprovação de uma legislação para o tema. Um problema apontado estaria na própria definição do conceito de “fake news”. O professor de direito Paulo Rená, que integra a coalizão de organizações da sociedade civil Direitos na Rede destacou a dificuldade em delimitar este tipo de conteúdo e criticou as definições adotadas nas propostas em tramitação na Câmara. “Temos Projetos de Lei que tentam tipificar [fake news] por meio de categorias imprecisas”, disse.
A representante da ONG Artigo XIX, Laura Tresca, lembrou que essas leis baseadas no conceito de notícia falsa foram criticadas em manifesto lançado por relatores para a liberdade de expressão de organismos internacionais como as Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos (OEA) divulgado no ano passado. “Proibições genéricas sobre disseminação de informação baseada em conceitos vagos como notícias falsas e informação não objetivas são incompatíveis com os parâmetros internacionais de restrição do direito da livre expressão”, defendeu.
O professor de direito eleitoral da Universidade Mackenzie Diogo Rais alertou para o risco de uma legislação repressiva. “Se uma lei for muito específica, ela poderá trazer silêncio à comunidade. Se ela for vaga, provavelmente deixará mais espaço para o Judiciário, e por mais que respeite este Poder não podemos depender dos milhares de juízes com milhares de decisões, a cada caso de um jeito”, ponderou.
O editor do site Migalhas.com e integrantes do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional Miguel Matos somou-se aos preocupados com o risco de uma legislação estimular práticas de censura “Se houver mecanismo de censura, se cada um que se vir ofendido por uma notícia que aparentemente é distorcida isso vai ser mais prejudicial do que eventuais problemas na eleição”, comentou.
Experiências internacionais – Enquanto alguns participantes citaram experiências internacionais como referências positivas, outros criticaram a intenção de regular o tema aqui mencionando problemas em iniciativas estrangeiras. O diretor da ONG SaferNet, Tiago Tavares, chamou a atenção para repercussões negativas de legislações adotadas em outros países.
Segundo Tavares, na Alemanha, a lei estaria sofrendo problemas de implementação e já seria objeto de revisão dentro o governo. Na Malásia, onde a prática foi criminalizada, um turista dinamarquês foi preso porque publicou em uma rede social mensagem sobre o tempo de atendimento de uma ambulância que teria sido diferente do efetivamente ocorrido. “É difícil chegar a uma boa regulação considerando a dinâmica própria da internet e o avanço da tecnologia”, opinou.
A definição da “verdade” – Outra parte das críticas sobre a ineficácia de uma legislação mirou a complexidade de definir o que é falso. A diretora do centro de estudos Barão de Itararé, Renata Mielli, alertou para o risco da criação de “tribunais de exceção” tanto em uma possível lei a ser aprovada quanto no uso de agências de checagem para definir o que é ou não “Fake News”. “O problema é tentar transformar essas agências em certificadoras de notícias, a partir de critérios de classificação que são subjetivos e passíveis de interpretação a partir de valores e vieses editoriais”, pontuou.
Recentemente, o Facebook firmou contrato com três agências (Lupa, Aos Fatos e Agência France Press) para analisar publicações. De acordo com a plataforma, aqueles conteúdos identificados como falsos teriam alcance reduzido.
Plataformas – A gerente de políticas públicas do Facebook no Brasil, Mônica Rosina, apresentou as medidas adotadas pela rede social acerca do problema. Além do acordo com agências de checagem de fatos, afirmou que há mais de 15 mil funcionários trabalhando no monitoramento de contas falsas, muitas vezes usadas para impulsionar notícias falsas. Segundo Rosina, a empresa está combatendo conteúdos considerados “caça-cliques”, que usam títulos chamativos para gerar tráfego para determinados sites.
Além das fake news – O promotor do Ministério Público do DF e Territórios e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Digital, Frederico Ceroy, questionou o fato da discussão no parlamento estar muito centrada nas fake news e não prestar atenção a outros temas, como a propaganda eleitoral paga em plataformas como Facebook e Google.
“Fake news é instrumento de perda de votos. O que ganha eleição é outra coisa. Fico preocupado porque esta será a primeira eleição com conteúdo impulsionado de forma legal e isso é um problema maior do que as notícias falsas”, disse.
A coordenadora do Coletivo Intervozes, Bia Barbosa, somou-se aos contrários a uma legislação sobre mensagens falsas e defendeu que o problema pode ser melhor tratado com a aprovação de uma lei de proteção de dados pessoais. No mês passado, a Câmara aprovou o PL 4060, de 2012, que foi encaminhado ao Senado.
“É a partir da coleta e tratamento massivo de dados que se promove a construção de perfis de cidadãos e é para esses perfis que as chamadas notícias falsas são direcionadas. Europa teve seu regulamento de dados pessoais entrando em vigor em maio e agora há a necessidade do Congresso concluir este debate e aprovar a lei”, destacou.