O abrigo
Desassossego da vida acaba quando estamos em nossa casa
Publicado
emTodo desassossego me distancia da sensação de estar em casa. Encontrar-me em situações desconfortáveis me distancia da proteção que costumo associar à emoção de me sentir em casa, em mim. Coração batendo calmo e compassado, a mente tranquila, corpo presente, são algumas das noções perceptivas que me fazem entender esse bem-estar que só o meu lar pode me trazer. Por outro lado, quando estamos desencontrados, fora de foco, corpo aflito, não há pouso possível. Estamos desabrigados.
Tenho me sentido assim. As mudanças da vida, quando bruscas ou profundas, me deixam mareado. Literalmente. O deslocamento num veículo ou a alteração de temperatura ao longo do dia são capazes de me fazer muito mal quando estou nesses momentos de intensa reorganização diante de um mundo que parece girar. Como se o corpo não conseguisse encontrar um ponto fixo que o permita estabilizar-se, enquanto a mente corre ensandecida atrás de entendimento e solução. Muitas vezes não há solução, ou essa está em curso, mas percurso longo, que demora. E há coisas que tomam tempo. Umas por gosto, outras por necessidade.
A vertigem dos últimos tempos ainda não passou, e sigo em busca de casa. A casa está aqui, mas não a encontro. Quando esse desencaixe desponta no horizonte da vida, é preciso se amarrar no mastro. O chão firme se converte em mar bravio e nossas emoções nos jogam de um lado a outro sem que tenhamos muito controle. Quando a terreno da vida entra em ebulição, adentramos no território das incertezas. Maremotos e tsunamis podem nos acertar em cheio em fração de segundos. Falta solidez debaixo dos pés e lucidez acima dos cabelos, o que nos desloca para fora debaixo de um temporal.
Não é refúgio idílico para ninguém se sentir expulso do conforto, mas lembro aqui que a vida é, afinal de contas, uma eterna sucessão de confortos e desconfortos, por que onde há crescimento, as formas se tornam obsoletas. A larva que não cabe mais no casulo, a barriga que limita o bebê, e por que não, a casa que já não nos abraça com o mesmo carinho de outrora. Desconforto que anuncia o novo, muitas vezes almejado; por gosto ou por necessidade. Ou por ambos, o que é o melhor dos mundos – saber para onde se quer ir e esse querer coincidir com a tábua das marés. E ainda assim, somos invadidos pela náusea do descompasso, estamos nas águas em movimento.
Conheço um engenheiro calculista que costuma nos lembrar que a terra é mar, casas e prédios flutuam sobre um enorme mar de terra. A sensação de firmeza é ilusória, não há nada estável nesse mundo. E mesmo cientes disso, seguimos construindo nossas casas e cidades, algo que se assemelha a uma maldição.
Que se revela, em verdade, uma bendição, quando penso da advertência de Bachelar, “se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz”. Assim como ele nos conta que não há sonho sem a proteção de uma casa, ouso dizer que não haveria casa sem que alguém a houvesse sonhado. E todo devaneio enseja, dentro de si, um certo desassossego. Apertemos os cintos.