Konstantin Gerber
Excelentíssimo ministro Alexandre de Moraes: diante das cenas em que ceifa plantas de cannabis no Paraguai, afirmo que o Brasil precisa resolver seu passado. E o passado que não passa está presente. A performance de V. Exa. revela o persistente passado da inquisição. Agiu como um oficial do santo ofício. Não vou rememorar as origens imiscuídas entre Igreja e Estado. Em Roma, havia a noção de paz dos deuses, um prenúncio da tolerância religiosa –a despeito de todas as perseguições que haviam–, até que Constantino oficializou o cristianismo como forma de salvar a legitimidade do Estado.
Pois bem, sua performance foi lá no Paraguai, país do Mercosul que tem no uso da erva-mate a expressão do modo de ser paraguaio –e que também é símbolo da identidade gaúcha. A cena de ir lá com um facão é mais um capítulo do colonialismo e da falta de critérios internacionais para lidarmos com drogas.
De outra forma ocorreu com o tabaco, porém aqui não me parece haver muito diálogo intercultural sobre as diversas utilizações do tabaco pelos povos originários. O tabaco era fumado pelos barões, e a cannabis, pela população negra escravizada. Ainda que hoje figure na lista dos proscritos, a cannabis será tida como commodity e fármaco no futuro. Isso sem contar as possibilidades de uso industrial.
Riscos e retornos – É de se pensar em uma gestão de riscos psicoativos, para além do conhecido risco sanitário, pois existem mortes com aspirina ou outros remédios, mas isso não faz com que assumamos, estudemos os riscos e tenhamos uma série de remédios no mercado. Não há como não se considerar o álcool uma droga perigosa. É a droga que mais causa danos no mundo.
E aí, o argumento cultural nada mais é do que um “racismo”, pois se elege o consumo de umas substâncias como superiores a outras. Colocaram certas substâncias nas chamadas listas internacionais por mera opção política, presumindo que são drogas de abuso sem finalidade médicas. O que é uma mentira. Até porque ninguém necessariamente se vicia em morfina porque precisou usar esse remédio para dor no hospital.
Existe um monopólio de certa medicina, combinado com uma indústria farmacêutica, cujos critérios são os biofarmacológicos, não havendo qualquer possibilidade de escuta para as demais experiências da humanidade com psicoativos. Não há qualquer possibilidade de reconhecimento dos usos tradicionais, ainda que tenhamos convenções internacionais da Unesco, dos direitos indígenas, da biodiversidade e até da proteção de espécies vegetais ameaçadas.
Ainda que as convenções internacionais de drogas façam menção aos direitos humanos e aos princípios constitucionais dos países –e aqui poderíamos invocar o pluralismo e a diversidade para lidar com o assunto drogas, o que inclusive consta nos princípios de nossa lei–, infelizmente não há qualquer perspectiva de diálogo intercultural sobre usos e abusos de drogas. A antropologia pode nos ajudar a verificar os controles sociais, os padrões de consumo, os ritos e interdições, os excessos ritualizados, bem como o chamado uso controlado, além do oferecimento de serviços públicos sem discriminação. Isso posto, para não dizer que nossa fracassada política de drogas viola o princípio da proporcionalidade, pois atinge uma porção de direitos fundamentais (vide taxa de homicídios), proponho as medidas a seguir.
Grupo de trabalho no Ministério da Justiça para enfrentamento estratégico das economias ilícitas; comissão de diálogo intercultural na Unasul sobre o problema mundial das drogas; licenciamentos dos usos medicinal, científico e religioso, podendo-se aqui pensar as experiências de redução de danos e as exceções de usos culturalmente condicionados a partir de acompanhamento com licenças; criação de empresa estatal para distribuição controlada, com instituição de política nacional de redução de danos, o que não exclui o licenciamento de microempresas e associações civis de pesquisa ou de usuários; indulto presidencial para usuários de drogas, de modo que sejam tratados pelos serviços públicos sem qualquer tipo de discriminação.
Além disso, considerando que jovens negros são vulneráveis à morte e à prisão, devemos lutar pela participação da população negra na formulação, avaliação e implementação de políticas públicas sobre drogas, nos termos do Estatuto da Igualdade Racial, por meio da “eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação da diversidade étnica nas esferas pública e privada”. Por fim, deve ser feito um decreto com estabelecimento de quantidades para presunção de consumo próprio e um ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade para a interpretação de que tráfico é somente o ato de comércio sem licença.
Tais medidas não excluem o debate judicial da descriminalização para o plantio doméstico e constituição de associações civis recreativas e medicinais. É preciso uma convergência entre as políticas de drogas, alimentos, psicofármacos, fitoterápicos, plantas medicinais, plantas tóxicas, álcool e tabaco. Temos de melhor lidar com as plantas e com os riscos da chamada experiência psicoativa. Não é necessariamente a droga que gerará a compulsão. O comportamento compulsivo pode se dar, por exemplo, com sexo ou alimentos.
Existem contextos e vulnerabilidades, ainda que se tente mensurar qual a taxa de risco de dependência de uma substância. O alcoolismo surge com a industrialização, mas também o desemprego e pode favorecê-lo. Simplesmente proibir é gerar o que no direito administrativo se conhece por “risco criado”. Chega de omissão regulatória e de racismo institucional. Por mais diálogo intercultural sobre o uso e abuso de drogas.