Entre os vários riscos de catástrofes globais conhecidos pelos seres humanos, alguns aparecem mais na mídia do que outros. Impactos de asteroides, erupções de supervulcões e as mudanças climáticas já protagonizaram filmes de Hollywood. E cada um deles teve um impacto devastador na vida do nosso planeta no passado.
Os episódios que poderiam ter acabado acidentalmente com a humanidade (e o que eles nos dizem sobre a possibilidade de isso acontecer novamente). No entanto, uma nova ameaça global capaz de destruir a vida na Terra — desconhecida para muitas pessoas — está se formando nas sombras da nossa vida cotidiana.
Ela é movida pelo imenso desejo humano de consumo material. E, paradoxalmente, uma consequência da própria vida humana. Basta olhar em volta — você está inseparavelmente cercado por objetos materiais —, sejam eles necessários em sua vida ou não.
Para cada objeto que usamos, existe uma crescente rede de ações globais que está lentamente destruindo a saúde emocional humana, esgotando os recursos da Terra e degradando os habitats do nosso planeta.
Se não for controlado, existe o risco de o consumo humano acabar transformando a Terra em um mundo inabitável? Será que devemos parar antes que seja tarde demais?
Uma equipe de pesquisadores do Instituto de Ciências Weizmann, em Israel, publicou recentemente um estudo que comparou a massa produzida pelo homem — também conhecida como massa antropogênica — com toda a massa viva, ou biomassa, do planeta.
Pela primeira vez na história da humanidade, o primeiro ou ultrapassou o segundo ou está perto de ultrapassar nos próximos anos.
O estudo estima que, em média, cada pessoa no planeta produz agora mais massa antropogênica do que seu peso corporal por semana.
“A descoberta de que a massa antropogênica — coisas feitas pelo homem — agora pesa tanto quanto todas as coisas vivas, e o fato de que continua a se acumular rapidamente, oferece outra perspectiva clara de como a humanidade é agora um ator importante na formação da face do planeta”, diz o professor Ron Milo, do Instituto de Ciências Weizmann.
“A vida na Terra é afetada de forma quantitativa importante pelas ações dos humanos.”
Esta revelação não é surpresa para muitos que consideram que os humanos já deram início a uma nova época geológica chamada Antropoceno — a era dos humanos, termo popularizado pelo químico ganhador do Prêmio Nobel Paul Crutzen.
Embora o início exato desta era seja discutível, não há como negar que os humanos se tornaram uma força dominante neste planeta, alterando todas as outras formas de vida por meio de suas ações.
A escala e o tamanho da massa antropogênica são alarmantes.
Veja o caso do plástico — o surgimento da era dos plásticos modernos ocorreu apenas em 1907, mas hoje produzimos 300 milhões de toneladas de plástico todos os anos.
Além disso, a percepção de que, depois da água, o concreto é a substância mais usada na Terra está além da compreensão.
O gigantesco processo de geoengenharia iniciado pelos humanos teve um aumento acelerado quando materiais como concreto e agregados se tornaram amplamente disponíveis.
Estes dois materiais constituem um dos principais componentes do crescimento da massa antropogênica.
Até mesmo as relativamente recentes aventuras humanas de exploração espacial, que começaram há cerca de 60 anos, estão desencadeando um problema desastroso de lixo espacial.
Paralelamente a isso, observamos o derretimento das calotas polares, o degelo do permafrost e o aumento das temperaturas no planeta.
Mas por que isso aconteceu? Os humanos são geneticamente inclinados a ser materialistas ao ponto de causar sua própria destruição? O acúmulo de massa antropogênica é apenas uma medida da taxa de aniquilação dos humanos? Ou a natureza vai preparar os humanos para lidar com esse problema?
Todas essas questões são altamente incertas.
Embora haja evidências de que o materialismo é aprendido e influenciado pela cultura, alguns argumentam que a seleção natural pode ter predisposto nossa espécie ao desejo de acumular coisas.
Nossos pertences podem nos oferecer uma sensação de segurança e status que, sem dúvida, desempenhou um papel mais relevante no início da história humana.
De alguma forma, criar coisas novas se tornou uma palavra divina na psique humana coletiva. Está desagradavelmente presente em todos os nossos empreendimentos, desde histórias antigas até laboratórios de pesquisa e desenvolvimento modernos.
“No princípio, Deus criou o céu e a Terra…” diz a história do Gênesis na Bíblia.
Os humanos foram condicionados a acreditar que criar algo novo é um propósito significativo de vida — e a única maneira de promover suas ambições. No entanto, esquecemos de colocar um limite de uso.
Os limites da ciência nunca foram tão evidentes ao tentar resolver esse enigma.
Depender apenas de soluções tecnológicas verdes é equivocado porque o foco ainda é baseado em coisas novas e mais uso — e não em mudar o estilo de vida ou modelos de negócios que originaram esse problema em primeiro lugar.
Mesmo que a gente consiga substituir todos os veículos movidos a combustíveis fósseis por equivalentes elétricos, por exemplo, as cidades já estão com dificuldade de tirar espaço dos carros nas ruas, e os veículos elétricos têm seu próprio impacto nos recursos mundiais devido aos materiais necessários para fabricá-los.
“O acúmulo de massa antropogênica também está relacionado ao desenvolvimento urbano, junto com suas implicações ambientais associadas, já testemunhadas em todo o mundo”, diz Emily Elhacham, uma das autoras do estudo do Instituto de Ciências Weizmann.
“Espero que a conscientização promova uma mudança de comportamento que permita encontrar um ponto de equilíbrio melhor. Cada passo nessa direção terá um efeito positivo.”
Veja a pegada de carbono de nossos gadgets, da internet e dos sistemas de suporte. Ela é responsável por cerca de 3,7% das emissões globais de gases do efeito estufa — e a previsão é de que este percentual dobre até 2025.
É possível reduzir as emissões com um e-mail a menos ou evitar um compartilhamento desnecessário de fotos nas redes sociais — pode parecer uma redução insignificante por parte de um indivíduo, mas podemos somar bilhões dessas pequenas ações.
As grandes empresas de tecnologia afirmam que estão se tornando verdes ou definindo metas para a neutralidade de carbono, mas raramente incentivam as pessoas a gastar menos tempo nas redes sociais ou a comprar menos produtos.
Em vez disso, os modelos de publicidade e marketing transmitem mensagens poderosas que reforçam o lema: criar e consumir mais.
Esse materialismo selvagem irracional também está profundamente enraizado nas tradições e nos símbolos culturais. Nos Estados Unidos, o Dia de Ação de Graças é seguido por outra celebração, a Black Friday.
Durante este ritual, longas filas de consumidores se formam nos shoppings, muitas vezes há quem saia machucado ou pisoteado — mas as pessoas estão convencidas de que é um esforço que vale a pena.
Na era do Antropoceno, os humanos podem se sentir no direito de depositar esperança na tecnologia para consertar qualquer problema, de modo que possam continuar a fazer o que estão fazendo.
Diante do acúmulo de plástico no meio ambiente, por exemplo, um surto de inovação resultou em copos de café biodegradáveis, sacolas ecológicas e canudos reutilizáveis.
Mas embora seja verdade que um modelo de crescimento sustentável que inclui nosso meio ambiente tenha um potencial muito maior para perseverar, precisamos de uma abordagem diferente para a sustentabilidade que trate do nosso consumismo desenfreado.
A covid-19 nos lembrou como a civilização humana é frágil e despreparada quando se trata de casos como uma pandemia.
Também nos ensinou que o comportamento humano pode ser modificado com pequenas ações, como usar máscara para mitigar a intensidade das tragédias globais.
A abordagem passiva da proliferação da massa antropogênica não se deve apenas à falta de conhecimento sobre seu impacto, mas, em geral, também tem a ver com a tendência humana de rejeitar fatos que não se enquadram em sua visão de mundo.
O ser humano está naturalmente disposto a desconsiderar as questões que não desafiam seu cotidiano ou que diluem sua conveniência.
Além disso, podem encontrar consolo no pensamento de que a natureza pode capacitar os organismos para sobreviver, não importa o que façamos.
É verdade que a evolução lenta e gradual, ao estilo Darwiniano, por meio da seleção natural é muitas vezes surpreende em certos ambientes extremamente poluídos.
Em 2016, uma equipe de cientistas no Japão encontrou uma cepa de bactéria em uma unidade de reciclagem de garrafas capaz de decompor e metabolizar plástico.
Por outro lado, esta descoberta mostra as maneiras sutis e poderosas pelas quais as ações humanas estão mudando a vida neste planeta.
A adaptação dos organismos em resposta aos poluentes é um fenômeno complexo.
“No longo prazo, um aumento sustentado da massa antropogênica levaria à perda de habitats por meio de deslocamento físico e alteração de habitats, como contaminação por poluentes resultantes da produção e descarte de massa antropogênica”, diz Alessandra Loria, bióloga da Universidade McGill, no Canadá, autora principal deste estudo.
A pesquisa indica que os efeitos negativos induzidos pela poluição geralmente pioram ao longo de várias gerações, embora o mecanismo de enfrentamento varie em diferentes espécies.
O rápido esgotamento dos recursos naturais e da biodiversidade não é uma corrida evolutiva normal à qual a natureza está acostumada.
Embora algumas espécies possam certamente se adaptar às mudanças que ocorrem em nosso meio ambiente, os humanos não são mais uma mera espécie que segue a evolução de Darwin, mas uma força muito maior que veio para conduzir a evolução neste planeta.
Estudos mostram que, para a maioria das espécies, não se espera que a adaptação evolutiva seja suficientemente rápida para amortecer os efeitos das mudanças ambientais causadas pela atividade humana. E nossa própria espécie não será uma exceção.
Embora não esteja provado que iremos nos destruir, há indicações claras de que ignoramos os efeitos por nossa própria conta e risco.
Por exemplo, algumas das extinções em massa na história da Terra estão relacionadas à acidificação dos oceanos. Os oceanos absorvem cerca de 30% do dióxido de carbono liberado na atmosfera, o que por sua vez aumenta sua acidez.
Os oceanos podem estar se acidificando mais rápido hoje do que nos últimos 300 milhões de anos, sobretudo em decorrência das atividades humanas.
“A vida humana será afetada negativamente por causa da perda de vários benefícios e serviços ecossistêmicos fornecidos pela diversidade biológica”, diz Loria.
“Por exemplo, a poluição da água pode afetar os serviços de abastecimento, como de água e alimentos, causando uma redução na diversidade alimentar e/ou na sua qualidade e segurança. A degradação generalizada dos ecossistemas ameaça as condições de vida na Terra, em particular a sobrevivência a longo prazo da nossa própria espécie.”
Nosso impacto no planeta é muito mais profundo do que as pegadas de carbono ou o aquecimento global.
Ele aponta para um futuro em que os efeitos da massa antropogênica vão assumir — se é que já não assumiram — a identidade da Terra e sua vida. Diante disso, os próprios humanos podem sair perdendo na corrida evolutiva.
Eliminar materiais como concreto ou plástico, ou substituí-los por alternativas não resolverá o problema fundamental das atitudes humanas e nosso apetite sem precedentes por mais.
É exatamente aqui que o materialismo pode se transformar facilmente em um conhecido desconhecido fator de risco para uma catástrofe global.
A infinidade de maneiras pelas quais ele pode transformar este planeta em um mundo mundano é algo que nossa civilização nunca vivenciou antes.
Na ausência de um escudo evolutivo totalmente seguro, poderíamos depender de nossa inteligência para sobreviver.
No entanto, como afirma Abraham Loeb, professor de ciências da Universidade de Harvard, nos EUA, e astrônomo em busca de civilizações cósmicas mortas, “a marca da inteligência é a capacidade de promover um futuro melhor”.
“Se continuarmos a nos comportar dessa forma, podemos não sobreviver por muito tempo”, diz ele.
“Por outro lado, nossas ações podem ser uma fonte de orgulho para nossos descendentes se eles sustentarem uma civilização inteligente o suficiente para perdurar por muitos séculos.”
A história de Bhasmasura na mitologia hindu oferece um paralelo sombrio do impacto do materialismo.
Devoto do deus Shiva, ele obtém uma bênção de Shiva, que concede a ele o poder de transformar qualquer um em cinzas com um simples toque na cabeça.
Logo após ganhar esta habilidade mágica, ele tenta testá-la no próprio Shiva. Shiva consegue escapar, reza a lenda.
Mas os humanos podem não ter sorte o suficiente para fugir de suas próprias ações.
A menos que a gente adote uma visão diferente enraizada na redução do consumo, as chamas do nosso próprio materialismo podem consumir a nós mesmos e ao nosso planeta.