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Deuses deram à poesia palavras que misturam erotismo e prazer

Sérgio escrevia contos. E ficava muito triste por isso.

Não que ele não gostasse de produzi-los. Apreciava como as ideias se engatavam a vocábulos, tentando seduzi-los para que as expressassem da melhor maneira possível. Só que o conto, assim como o romance, são itens do gênero ficção, enquanto a poesia tem sua própria rubrica, Poesia, com p maiúsculo. E mais, “poeta” vem do vocábulo grego para autor ou criador, enquanto “poesia” vem do grego poiesis, ação de fazer alguma coisa. Ou seja, toda ação é poesia, todo criador é poeta. Sérgio, porém, não ousava atribuir-se tal condição.

Para além das considerações sobre a origem das palavras, o problema dele era com os poetas. Morria de inveja de suas aventuras e viagens fantásticas, muito mais emocionantes que as de um reles contista.

A poesia erótica, em especial. Nos poemas, a mão do atleta acariciava um seio, depois descia para o cálice e, pa pum, o néctar inundava o recipiente. Parafraseando o Salmo 23, pensou com um risinho e uma pitada de inveja: “O cajado dos poetas as consola; o cálice delas transborda”.

Nos contos eróticos, o buraco era mais embaixo. Nos textos dele, pelo menos, era necessário conduzir laboriosamente, cena a cena, linha a linha, a personagem até o orgasmo. Na vida real era pior, tinha de suar a camisa (que, diga-se, na ocasião ele em geral não vestia) para levar a atleta ao clímax.

Diante desse quadro, a conclusão lógica era inevitável: os deuses haviam dotado os criadores de versos eróticos de poderes paranormais, entre os quais o dom de garantir às parceiras o paroxismo do prazer.

Outros poemas, não eróticos, confirmavam a existência desses atributos outorgados pelas divindades. Recordou-se de um em que o poeta percorria o espaço para brincar com as estrelas. Ele tentou fazer o mesmo, alcançou uma boa altitude mas quase morreu sem oxigênio: aparentemente, poetas não precisavam respirar quando se deslocavam pelo espaço sideral.

“Mas graças a eles aprendi a voar”, pensou Sérgio. Ele havia lido versos sobre voos da imaginação, entusiasmou-se com a ideia, mobilizou seu psiquismo e começou a ensaiar. Foi um fracasso atrás do outro, até conseguir planar a 30 centímetros do solo. Atualmente podia voar a 100 metros do chão, mobilizando a energia magnética do planeta. E, depois de acumular cuidadosamente forças, lançar-se como um foguete pelo espaço, tendo o cuidado de manter-se sempre dentro da camada atmosférica.

Pensou pela enésima vez em trocar os contos pela poesia, e pela enésima vez desistiu. As deidades não lhe haviam concedido o arsenal sobre-humano de um poeta. O escrever relativamente bem e o voar, que o distinguiam, foram conquistados com esforço, numa tentativa inglória de emular os bardos e trovadores, favoritos das divindades.

Balançou a cabeça, com tristeza, e, para se consolar, lançou-se aos ares, sobre o Atlântico. Era o que sempre fazia quando estava deprimido.

Quem sabe avistaria algum poeta fazendo o mesmo, tentaria vencer a timidez e conversar com ele. Mas, é curioso, jamais havia avistado algum em seus voos noturnos.

“Vai ver eles ficam invisíveis quando voam”, pensou o contista. E suspirou: “Tantos poderes…”

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