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Algumas horas

Devaneio de uma noite qualquer acaba com safanão de guarda

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Autor/Imagem:
Cassiano Silveira - Foto Irene Araújo

Início da noite. Enquanto subia pela rua do centro da cidade, observava o homem de paletó parado quase em frente à porta do elegante edifício executivo, o mais envidraçado entre as torres da downtown. Ele olhava distraído para o celular enquanto fumava um cigarro longo e de ponta rubra. Apesar da distância, conseguia sentir o cheiro da fumaça, era cigarro de menta. A brisa leve trazia o aroma do fumo do homem e levava embora a inhaca de suor e dias sem banho que lhe eram características.

Pensou que gostaria de cheirar assim, igual ao cigarro daquele homem. Gostaria de ser aquele homem pelo menos por algumas horas. Enquanto caminhava, devagar e invisível, ia arquitetando um plano mirabolante. O homem se lhe parecia: cor do cabelo, estatura, porte. A barba e os cabelos encaracolados. Um nariz proeminente e altivo – se bem que o seu próprio, por precaução, preferia manter sempre baixo, para se manter o mais invisível possível.

Atravessou a rua, que magicamente se apresentava escura e silenciosa, algo impensável naquela boquinha de noite. O homem não o via, absorto em seus pensamentos, fitando a tela do celular, parado na quina e ao pé da longa escadaria do prédio. Aproximou-se lentamente, caminhando pelo passeio absurdamente deserto, tateando dentro da mochila em busca da garrafa de cachaça. Quando atingiu a distância adequada, golpeou o homem na cabeça, com força o suficiente para derrubá-lo.

Arrastou o homem para o vão embaixo da escadaria, quase oculto pelos arbustos do jardim requintadamente projetado. Tirou suas roupas todas, tirou as dele também. Ambos nus, por um momento tão iguais. Vestiu a cueca de seda macia, as meias finas e pretas. A calça impecavelmente lisa, a camisa de linho cheirosa à menta, o cinto de fivela bem trabalhada, que combinava com os sapatos de um tom marrom avermelhado que lhe agradava (gostava tanto de vermelho, queria tudo vermelho; que bom seria se fosse um terno vermelho).

Vestiu o paletó italiano e ficou feliz que ele não usasse gravata, pois não saberia dar o nó. Olhou o homem caído e nu, amontoado, o filete de sangue escorrendo da têmpora, cruzando sobre a pálpebra do olho esquerdo e descendo até a ponta do nariz, pingando quente e regando o jardim. Gostava de vermelho, mas pediu à Deus que não o tivesse matado. Jamais mataria alguém! Ou mataria? Ou matara?

Saiu de seu esconderijo travestido do homem. Tateou os bolsos, pegou um cigarro do estojo de aço inoxidável e acendeu com o isqueiro de aço inoxidável. Sentiu-se inoxidável e poderoso, o aroma de menta enchendo o ar novamente. No bolso da calça um chaveiro com uma estrela brilhante gravada.

Carteira, dinheiro, cartão de crédito. Juntou o celular caído em meio à grama. Sem medo, caminhou escada acima, entrando no santuário de metal e vidro que lhe fora sempre vetado. A recepcionista o cumprimentou com um sorriso: “Já de volta, Dr. F**?” Ele retribui o sorriso e seguiu para o hall dos elevadores. Encaminhou-se direto ao estacionamento para pegar seu carro, que reconheceu pelo bip ao apertar o botão no chaveiro. Entrou no carro longo e preto, o cheiro de menta sempre ali. Olhou o celular. Mensagem da mulher pedindo croissants da La Boulangerie: “Claro, sei onde fica!”

Apertou o grande botão no painel e precisou ouvir duas vezes para ter certeza que havia dado a partida. Segurou o volante revestido com o couro suave de algum animal morto e tocou de leve o pedal de metal brilhante que ficava mais à direita. O carro se moveu carregando suas toneladas de imponência, os faróis automaticamente acessos ofuscando o rapaz que cuidava do estacionamento, sentado numa cadeira no canto.

O rapaz acenou sorridente para a janela preta e insondável do sedã. A porta da garagem se abriu à sua frente, encantada por algum mistério eletrônico ou pelos dedos de alguém que recebia um salário para abrir portas de garagens em prédios de metal e vidro.

Seguiu pelas ruas protegido em sua carruagem negra, refulgindo as luzes da iluminação pública, rebrilhando todas as cores dos luminosos dos comércios que se ofereciam aos passantes. Os pedestres paravam nas calçadas para vê-lo passar, um recém empossado senhor do mundo. Seguiu por ruas que já conhecia, mas elas pareciam novas ruas vistas daquele ângulo.

Poucas esquinas depois parou no estacionamento da La Boulangerie. Saiu do carro e entrou pela porta automática do estabelecimento, um segurança de uniforme o cumprimentando: “Boa noite, Dr. F**!”. Acenou com a cabeça, um sorriso insuspeito no rosto.

Dez croissants, pediu sabores variados. Cortejou a jovem atendente do balcão, que calou ante o elogio indevido, mas não inesperado. Pagou com uma nota de duzentos e recolheu apenas o troco graúdo, abandonando as moedas e notas pequenas no balcão.

A estrada passava veloz sob as rodas do sedã silencioso, o caminho para casa mostrado na tela multimidia ao centro do painel. Toda a dor e escassez ficavam para trás. Tão fácil se acostumar!

Ao chegar no seu endereço, os portões mágicos se abriram novamente. Luzes se acenderam ao longo do caminho. Entrou em seu lar, um servidor da casa recebendo-o na porta principal, sem que precisasse pedir: “Boa noite, Dr. F**, deixe-me pegar essa sacola”. Com um gesto aleatório, dispensou o empregado.

Sem dizer palavra, caminhou até a sala, largou os croissants sobre um sofá enorme, aproximou-se da mulher sentada na poltrona e beijou-a profundamente. Puxou a mulher para si, enlaçou-a pela cintura, apertou seus seios de silicone, 600ml cada, e fizeram amor ali mesmo, sobre o espesso carpete da sala, até um orgasmo intenso e lindo.

“Ai, amor, quase não te reconheço! Há quanto tempo desejava te encontrar assim, faminto!” Deixou a mulher e caminhou até a suíte, tomou seu banho em banheira de sais e vestiu o pijama fino, ligou o split na parede, programado para dezenove graus. Acomodou-se entre penas de ganso, rendas e fio egípcio. Enfim, calou sua mente.

Um cutucão forte o acordou.

– Circula! – disse o guarda civil – Não pode ficar parado aqui não!

O guarda seguiu rua acima, cumprimentou o homem ao pé da escada e lhe falou alguma coisa. O homem olhou brevemente em sua direção, depois deu um aceno de cabeça para o guarda, jogou o cigarro ao chão e subiu as escadas de volta ao interior do edifício.

Ele continuou seu caminho. Juntou a bituca meio acesa que o homem arrumado jogara no chão, um resto de fumo, alcatrão e outras coisas imprestáveis e elegantes. Levou à boca sentindo o fedor de menta encobrir o cheiro do seu corpo suado. Enfim, tragou a parte que lhe restava daquele sonho insano.

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