Tea for one -
Devaneio sob chuva e whisky, só para Gracineide
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emEstava num bar, brando. Chovia lá fora. As goteiras rasgavam líquidos evanescentes nos vidros adormecidos. Esperava por ela. Cigarro em punho, deixando o som ambiente desaparecer e dissolver-se em baço fumo azul. Ela demorava. Não tinha a certeza se viria. Com certeza não viria. Não interessava. Eu estava lá, a acontecer. Mandei vir whisky.
Mulheres interessantes interessadas nas suas conversas, nada mais. Rodo o olhar, o redor é satisfação pura de século XXI, estereotipada nudez de ser noite e eu esperar por ela enquanto lá fora chove. Chove muito.
O chão parece mortífero, parece engolir os meus pensamentos. Os meus pensamentos. Os meus pensamentos surpreendem-me, mornos, tepidamente inofensivos, sem lanças ou punhais; há muito vou aprendendo a domar o desejo. Ponho a cinza no cinzeiro.
O rumor das vozes das pessoas em redor é apenas um pormenor, prefiro o som que sai esvaído do tecto. Lá fora chove. Chove muito. Não me adianta ser impaciente. Serão as sortes dos dias, ou desta noite, a ditar se ela virá ou não.
Há uma lua lá fora, prateada, aparecendo e desaparecendo entre as nuvens cinzentas ligeiras, desordeiras. A noite neste sítio é cenário sem grande exaltação, tudo parece querer estar de olhar embaciado a ver a chuva cair, cervejas e álcool à descrição, telemóvel na ansiosa mão, aquela estranha parece preocupada, tem uivos nos anéis coloridos que saem do seu corpo. Ela deseja muito. Talvez companhia, alguém a dissipar-lhe o desejo nesta noite de chuva, alguém a dizer-lhe o que ela quer precisamente ouvir enquanto mastiga pastilha elástica e entretém o nervosismo tiritando os dedos na mesa. Apetece-me abordá-la. Está lá ao fundo, vejam, ela está lá ao fundo. Um rock 70 rompe a plasticidade de átomos e pessoas neste bar. Fico onde estou. Ponho mais uma cinza no cinzeiro.
Como chove! Parece o fim de tudo! Algumas pessoas sem nome entram de cabelos molhados e roupa pingada, deixam os guarda-chuvas à entrada enquanto se ouvem os aplausos da chuva contra o cinzento pavimento.
Ela virá ou não?
Essa é a questão. Ou melhor, uma das questões porque ainda não entendi o que faço aqui. Ponho cinza no cinzeiro.
Ah, é a empregada de whisky na bandeja. Sorri. Tem olheiras da noite, eyeliner escuro, um olhar de noites em quartos arrendados, faz favor, os seus dedos parecem porcelana estressadamente elástica, vejo duas pedras no líquido amarelo a boiarem e penso nas suas mamas, como devia ser giro, enquanto a chuva sombreava a parede oposta ao brilho gotejante da janela do quarto arrendado, fazer gritos de amor com ela amordaçado, escorrendo suor molhado, ouvi-la gemer como uma gata enroscando-se no meu corpo, o cheiro dos seus cabelos, o eyeliner misterioso, os seus olhos enquanto fazemos amor a refletirem a chuva clara e sombria que goteja da janela do seu quarto arrendado. Vai-se embora arrastando o meu fumo.
Ouço uma harmónica solitária arranhando a fundura do meu existencialismo de poço fundo segurando o meu cigarro, pondo cinza no cinzeiro. Foi-se. Vai atender outro.
Ah, tenho o copo à minha frente, o líquido parece luzir céus em fogo com os cubos de gelo a servirem de cidade cristalizada, endemoninhada. Pego no copo. Ela virá ou não? Bebo. O travo do malte e da empregada e da minha amiga, talvez já neste quântico momento namorada, faz-me avançar a mente em filmes rápidos de desejos quentes, de líquidos vermelhos, luz, de inconscientes brilhos de sementes evanescentes.
Dentro deste pântano sou sempre eu olhando-me em redor atentamente para as pessoas que, como eu e como este calor ardente, são o espelho meu dedicando-se á arte ancestral da crítica das coisas boas constantemente; ao culto do julgar algemadas as sombras do vazio silente que passam á sua frente por si mesmas desejadas como sonhos de unicórnios sobre as nuvens, as trovoadas, como se sonham e se sonham nas suas brancas almofadas.
Chove.
O whisky arranca-me uma explosão de sangue enquanto sobrevivo anônimo neste ambiente de rádios ligados. E volta o som da harmónica outra vez, estou só, é um facto. Bebo esquecido destas pessoas que parecem coexistir bem numa espécie de mundo provisório onde viverão alguns anos até as sombras dos amigos e parentes saírem das suas lápides standart. Ponho cinza no cinzeiro, ou melhor, é melhor apagar o cigarro, pensei de mais, chove demais, ela não vem, talvez nunca mais, tinha pactos de sangue para fazer com ela no telhado de um prédio sombrio, depois, beijava-a, e o nosso sangue de matrimónio selava-se nos lábios saliva, no cubo de gelo que passeia agora na sua barriga, no frio, na libido prometida e nunca cumprida, nesta noite de caos, de caos, de caos sempre e sempre eternamente somos maus por medo do dever amar, a alma é do céu caída e volta, volta sempre, ás alturas da sua própria saudade para a Nova Jerusalém prometida, a outra cidade que, como as gotas desta chuva sem mente ou idade, continuamente, continuam e continuam a chamar-me para lá levemente, de volta á perpétua espiral do eu e do sempre, de volta á subida e descida sem final no eterno contínuo permanente, na subida e descida da procura pelo eterno feminino consolando as feridas da mente; do nome da palavra perdida que neste silêncio de chuva será gente certamente mas será gente perdida.
Chove.
Chove.
Chove a minha alma líquida, parece que me estou a dividir em muitos eus sós, rastejando nas águas que ofuscam os vidros deslizando esquecimentos azuis, cordas enlaçadas com vinte e um nós.
Bebo.
Se calhar não tenho alma. Há uma zombaria no mundo paralelo ao lado. Não são as pessoas deste lugar, é antes… É antes uma música distante, entre a mente, o olhar envidraçado e a noite lá fora a chorar copiosamente.
É outra gente. Não me adianta entrar em pormenores, são detalhes, talvez seja o malte a dissolver-me as percepções. As percepções…. Como parecem musicais. Distantes mas musicais. Ela não vem. Que importa. A noite já está morta e eu, eu tenho muito tempo, talvez entretenha a eternidade segurando o vidro frio deste copo onde a chuva parece deslizar e a noite, e a noite…, trémula noite de pavor ou serão os meus dedos encharcados de suor?
A música mudou, está lendária, ouço-a como se fosse lendária, saída de um mito ou de um grito que arranca a impressão plástica em movimento que tenho deste lugar lento, lenda, chuva lá fora. Ela não vem. Nunca virá. É sina. Tenho linhas nas mãos que me desajustam da realidade, pareço estática de sombra difusa anónimo na multidão, linhas nas mãos e realidade difusa. Bebo devagar soletrando no copo e no líquido palavras mágicas, bruxaria.
Chove.
Chove.
Chove.
Shhhhhh!, calem-se habitantes dos mundos paralelos!, tenho os dedos amarelos de malte, passo a mão através do copo cheio de líquido dourado, ninguém viu, sou mágico sem o saber, mas o que eu queria realmente saber era se a chuva, não, a minha alma, não, ela, a miúda que era suposto aparecer, aparece, aparece, aparece nesta espécie de ser a desvanecer que a lisérgica noite esquece. Não.
Nas vidraças a água desliza em estranhas contorções finas, estou imerso em gentes murmurando, em neblinas, já não sou eu, é alguém que vai falando, alguém que me ajuda, que me ajuda a subir sem desistir as colinas do existir, além do firmamento o meu nome está chamando, chamando, chamando-me para ir, vertigens e alturas dentro deste agora momento que é como um desistir, um desistir que procuras, através da minha lição de auto-esquecimento anônimo criando situações contra o vento avançando lento pelas ruas. Alto!
Não posso enlouquecer. Acendo mais um cigarro.
Citando alguém direi: “…aprender a esquecer”. Esta noite não me esquece. Pertenço a esta noite, a este sítio, à máscara de mim que ouve a música subir sem fim, a este lugar cravejado de matéria química à qual pertenço e sinto sentindo o travo a aviões dourados em mais um pequeno gole desta treta de malte.
Rasgava o mundo de raiva, espumava, teria delirium tremens à quinta saída de mim mesmo amarrado a uma cama branca de hospital psiquiátrico rodeado por gorilas lentos de xanax e ardor hermenêutico zeloso. Mas não. É só mais uma noite. Uma repetição. Uma lição à chuva. Um súbito clarão. A lua é prata luminosa, atirada de nós há milhões e milhões de explosões de tempo algures agora, algures lá fora e chove.
Chove. Chove lá fora. Um momento, vou, vou… vou penetrar na aurora.
Raios fulminam lá fora os prédios chorosos, as fachadas estão impressionáveis, temerosas da chuva intensa que bate e aplaude até cair no cinzento pavimento que no chão arde. Há mais gente a entrar. Que entrem, testemunhem-me a caminhar até à minha mesa onde um copo meio cheio de um líquido doirado e um cinzeiro com um cigarro apagado me esperam, a mim, inseguramente eu, esperando por uma mulher ou o que acontecer nesta noite sem ser, sem ser sempre eu a dizer continuamente o que está a acontecer.
Cronômetros de mim disparam e partem-se em estilhaços de mil cristais. Seremos normais? Nós todos aqui? Seremos normais? Estaremos lúcidos da falta de luz que este bar contém? Mão, mãe. Sento-me. Chá para um.
Olho para o meu relógio de pulso. Não trouxe o relógio de pulso. Para quê relógio, mesmo relógio de pulso?
A música mudou outra vez. Suspira outras noites gravadas em estúdios confusos repetindo-se indefinidamente pelas noites solitárias de milhares de lugares onde, curiosamente, eu me encaixo no perfeito e presente momento de ouvir as suas notas, os suspiros e as guitarras enquanto a chuva cai e toda a minha esperança líquida numa noite como esta cai, cai e se esvai, se vai, como a chuva que cai e sempre foi assim, ai, o eu, o mundo em mim e mim no mundo, bebendo até ao fundo o raio do mundo rodando e rodando num universo em expansão depois de outra, flash!, explosão. Mas não. Estou. Estou para estar. Para ficar a sorver a pouco e pouco o nada que me resta nesta espécie de mistura entre madrugada e festa, nesta real e dourada gesta, teatral noite mestra, encenada com a noite, a chuva, a lua e o malte que me testa. Penso que penso demais. Isso põe-me a voar além dos relógios. Talvez me perca no meu voo esta noite, chá para um.
Espero uma vida inteira a passar-me diante dos olhos refletindo os coriscos lá fora, sopros de ventos desejosos nos ouvidos, gemidos num quarto arrendado, sons de aplausos da chuva batendo no cinzento pavimento. Estou a fragmentar-me. Tenho o pensamento fora da razão e da lógica. A lógica. A lógica era ela ter aparecido, termos falado com lógica a melhor maneira de esquecer as nossas vidas, de chegar á simples conclusão que viver sem mentir é ilusão, até tudo se fundir num orgasmo trovão alojados num motel por aí ou por aqui além da estrada clarão, na casual conversa que já tive com ela agora, esta incerta cena de decisão que o tempo deixa deslizar como quem deseja em vão. Isso era toda a lógica, toda a lógica sonhada talvez. Talvez a ilógica trovoada me tenha levado a pensar nela, talvez este agora seja ela.
A chuva cai lá fora e cai dentro de si também. A saudade assalta-me, lança-se sobre mim como cavalos entre valquírias correndo, correndo, correndo… Deixo o olhar perder-se nas águas que vão no vidro morrendo, luzidias, risonhas, fantasmas de plástico, gritos no bar ao lado, o sol amanhã… Mas, que estou dizendo? O agora nunca será o amanhã e o amanhã agora é tão distante, tão distante como eu estou agora, neste instante, dos murmúrios dos violinos assassinos em staccato desacato de toda esta gente á solta, á minha volta, provocando, ora agora, ora depois do agora em tardia hora, a ordem e o caos por um triz. Neste recreio brincamos á satisfação decadente e ignorante de nos ocuparmos somente da satisfação dos nossos próprios sôfregos desejos que desesperam para serem mitigados por palavras doces, encantos de música rock 70 e chuva morna, longe de casa, longe de tudo, tudo.
Pedaços de pensamentos como algas assassinas boiam no ar. Tenho o andar afetado, pareço febril, caminhando equilibrado nesta espécie de festa pueril que ronda à minha volta, que ronda á minha volta servil, a vida que virá e que me resta neste já que já não volta e corre como uma revolta das sombras danadas percorrendo de noite as ruas apinhadas com pressa passando á frente das outras sombras das gentes projetadas, não entendo nada, nada tenho a entender, explodem constelações misturando-se com o som rock 70 super plus que me reduz a… a… ser, a seguir a luz do whisky malte ou da vida, a luz que resta depois de acabada a última festa nossa vivida.
Passa a empregada arrendada de eyeliner escuro no olhar maduro. Sou cão salivando as suas inconscientes seduções, concebo rapidamente em nós dois um futuro. Ela enche o tabuleiro com mais copos de cerveja, ganha mal a arrendada, penso no seu virtual quarto onde se ouvem tocar guitarras longínquas enquanto ela se despe e deixa a sua negra roupa interior em cima do aquecedor, dispo-me ébrio de mundos, abro a janela do seu quarto e apetece-me gritar até o meu grito se fundir num relâmpago profundo e rápido que nos ofusca a nudez de sermos nós e este mundo. Sento-me. Sento-me outra vez.
Espero por quem afinal? Ah sim, pela miúda distante que podia vir a ser a minha amante, mãe, mulher, a tal. Como ela está distante. Com certeza está nesta altura a olhar para o teto enquanto um tipo que desconheço a cobre com a sua sombra e lá fora chove. E aqui também chove.
Aqui? Isto? Estou nisto? Espaço e tempo parecem sons de guitarras eléctricas distorcendo-se até ao fim do juízo, até ao feedback nítido de uma paragem cardíaca fatal ser uma linha algures horizontal numa cama de hospital desta cidade em que existo, em que existo para o bem ou para o mal. Que cidade é esta? Aonde estou? Pareço Descartes negando tudo até ao solipsismo de copo de whisky doirado na mão a fingir que cismo.
…As mulheres nuas, as bacantes, as pétalas douradas do céu caindo, onde estão? Para onde foi mais esta ilusão? Preciso de um choque de realidade. Acendo mais um cigarro.
Como rende a minha vida aos retalhos! E aqui estamos, contagiosos de plasma, espantalhos da noite. Este bar parece um abajour na minha mesa de cabeceira. O conforto de estar triste fumando de olhar molhado vendo a chuva a escorrer no fundo deste cenário envidraçado! Ah se ela viesse! O amor é uma questão de oportunidade, tenho de ser pragmático enquanto estou vestido de escuro de cigarro e de copo na mão a perguntar ao futuro: “Ela vem ou não?” Se o acidente disto tudo disser que não fico sem motivo.
O bar está recheado de mulheres bonitas. Sonho em ser ator dentro deste filme agora que fitas, chove, lancinante grito, chove e chove o infinito lá fora e eu, ou o que eu fito, é espera pela minha solidão fora concebendo numa rápida previsão a estrangeira que da chuva se esgueira e da noite sem fim para mim se abeira, é…, é já a hora, a hora que há de vir vinda lá da rua molhada, vinda lá de dentro, de fora da poente aurora. Que falta de carpe notem! Que falta de espontaneidade! Eu, uma gota de chuva que cai nesta cidade, espero por quem afinal?
Vou fazer algo de produtivo. Vou meter conversa com uma mulher qualquer que se me atravesse no caminho. Olho em redor. Algazarra geral como se os foguetes de uma festa local explodissem todos colorindo os olhares fixos no céu. Preciso de escolher um alvo. Tenho na percepção milhares de instantes hilariantes e pareço não conseguir escolher qual há de ser…
Naquela mesa, escuta, naquela mesa estão três, sozinhas, copos de cerveja e carteiras escuras presas ás mãos, falam intimidadas com o apertar lento das paredes e o rodar lento dos relógios, qual será a intenção delas em vir aqui? Conhecer-me? Não. Eu sou apenas uma personagem de ocasião que passa desfocado nos seus olhares. São novas, entre os 20 e 22, há uma de cabelos negros insinuantes, é a pose dela ou o malte em mim mas parece insinuante. Devo dizer-lhe algo de importante tipo: “Queres rebolar comigo no pavimento à chuva?”
Há um furor extático em mim que não consigo controlar, estou barroco demais, tipo estar no abismo ecoante entre a vida e a morte e escolher beijá-la agora sem mais nem menos. Seria capaz disso? Acho que sim. Chama-se a isto, jovens aprendizes, Dutch Courage – É isso, a outra lá estará a arfar olhando infinitamente as cambiantes do candeeiro pendurado no teto enquanto a sombra do tipo a cobre e lá fora chove. Que se dane. É tudo ilusão.
Filosoficamente estou luz dentro de um corpo prisão, dentro de um convencionalismo prisão que eticamente não me deixa levantar-me de onde estou, dirigir-me aquelas três e beijar a de cabelos negros de pose insinuante. Rasgo este pensamento, apetece-me outro…
… copo na mão, vestido de negro, avanço para a mesa onde estão as três, passam-me faíscas no olhar enquanto caminho, aproximo-me, aproximo-me demais das três, o termómetro emocional partiu-se, explodiu!, pego no queixo da miúda de cabelo escuro e SMACK! Búzios e lanternas rodopiam… Ela levanta-se e prega-me um estalo com a sua mão pequenina, com os seus leves dedos pequeninos…. Sorrio cinicamente, é portuguesa. Se eu estivesse na Holanda!
Começa a gritar qualquer coisa que não entendo mas que me soa a solos de bateria gasóleo extra-cash. Ó. É a harmónica outra vez, a cada sopro fico com a alma levada no vento em rodopiantes dentes de leão.
“Sim? Não estou!”- digo-lhe.
Ela berra aos meus ouvidos, tens uns dentes queridos, deve-se chamar Luzia. “Espera – digo – Vou-me já” – “Ou eu chamo a polícia!…”
Nisto, como que vinda através da névoa dos néons e do malte de um Quinto Império feminino, chega o meu encontro, a tal mulher que eu especulava e especulava, como um judeu sob o signo de gémeos com sentido de eterno peregrino que a mensagem criava.
“Pensavas que não vinha?” – disse-me estranhando a estranha murmuração vociferante das três amigas que agarravam as suas carteiras negras e saíam do bar enquanto ouço “Maluco!” saído dos lábios SMACK da miúda insinuante de cabelos negros e lipstick malte rock 70 super power erection.
“Pensavas que não vinha?” – dizia ela, a tal, numa voz sozinha enquanto rodando à minha volta o redor algazarra parecia desaparecer em fios de lã.
“Pensei em tudo se queres que te diga. Anda, vamo-nos sentar ali”. Enquanto nos sentávamos, cuidado!, as pessoas olhavam-me como se fosse um Zaratrusta ou um albino bêbado filho menor da noite e da chuva que caía e caía.
Ela vem com uma conversa de que se atrasara, talvez o tipo sombra não a deixasse em paz enquanto não se viesse e a chuva a cair e as cambiantes do teto ou do candeeiro a mudar e a mudar…, vestiu-se, disse-lhe uma mentira revólver rápido nos lábios e desceu o elevador, que se atrasara, estivera a fazer um trabalho universitário com uma amiga, enquanto descia o elevador ia rasando os lábios com um batom bom, caro, rock 70 crash ready night, com uma amiga, que seca!, e o computador emperrou!, e, na rua, saindo do apartamento, deixou cair o sapato vermelho, à chuva tentava calçá-lo cambaleante, ninguém a vira, que alívio! pensava! Agora vou até aquele gajo maluco, deve ser demais o erotismo rápido de…, que seca!
Enquanto a chuva caía, gania, molhava e revirava com o vento, batendo crua no cinzento pavimento, eu ouvia-a de olhar desfocado pensando nos dias de Verão onde havia campos verdes junto à estrada e rios serpenteantes onde rolavam águas macias sobre as pedras deste Letes longe e esquecimento.
“Ainda bem que vieste, esperei um pouco mas valeu a pena. Queres beber alguma coisa?”
Aproxima-se a empregada de eyeliner mortal sobre os olhos arrendados, com certeza, dois Martinis, com certeza, passou-me uma fragrância a vestido de noite no aquecedor irradiando a sua nudez e seios arrepiados, ia-me desfazendo aos bocados, um cansaço, os mundos paralelos sugavam cada bocadinho sóbrio de mim, assim ia indo, como um solo de guitarra castanho fazendo arabescos num palco escuro.
Olhei-a e vi o futuro: nós, um carro vermelho, muitos quilómetros de estrada nada e nada estrada, conversas dentro de um líquido amniótico, gritar, já, Ahhhhhhhhhhhh! Para onde íamos?, ver alguém, um sábio, um homem que sabia o destino traçado nas estrelas, as linhas nas mãos, acho que a amo…
“Dois Martinis!” – “São bzz de euros!” – “Tome.” – disse a arrendada empregada de eyeliner… Sem querer coloco-lhe um preservativo na mão e ela diz: bzzz.
Olhei a mulher à minha frente, a mulher causa-razão de eu estar ali naquele bar bazar onde a chuva malte escorria nas vidraças dos meus olhos devagar, contorcendo-se, cambiando de fluidez e… Mudou a música outra vez.
Rock 70 hold on ´till you cry. Melodias choque, repetindo-se até o meu estômago sorver o doce anelo de mais um Martini com gelo.
“Sara… Tu sabes a razão de eu estar aqui…. – seguro-lhe a mão – ela disse qualquer coisa como: “Queres mais um whisky? Tenho uma vizinha que…”
“Sara – digo-lhe de dentro da cidade dos danados – (tenho os dedos cruzados, apostarei emocionalmente o meu peso em ouro nesta noite toda, sim olhos castanhos, és o meu terreno tesouro que o meu desejo entesoura) – penso vendo o pensamento como palavras cruzadas formando-se em neons interseccionando cores em cada caráter de seres Sara, a minha mulher…
“ Sara… Tudo o que eu posso dizer-te são meras palavras que não carregam consigo a quantidade, o total do que sinto por ti… Sara… Queres que te fale com voz romântica? Com a voz trêmula de um pedinte ou com os artifícios de voz de um imperador?… Sabes que quero que o nosso amor, que as coisas deem certo…”
Ela, lenta, como um blues fora do alcance de se ouvir nitidamente mas que se percebe o ritmo inconscientemente na voz que se lamenta, os seus olhos úmidos a querer dizer, a querer dizer simplesmente…
Eu, nesta lenda, a pensar na empregada de eyeliner numa espécie de flash!, de ser trovoada rápida e lenta cruzando feixes de luz lá fora!, não sei, e outra vez uma espécie de flash! E o senhor trovão e a chuva chora, onde estou?, algures daqui fora num consultório treinando-me entre estímulos e reflexos o que se passa na minha mente agora, chá para um…
Parei de olhar para dentro do whisky dourado, estava só, na ilha do Sul encantado, para além do bem e do mal, chovia lá fora, e ela, ela não viera afinal…