Quando dei por mim, já estávamos correndo como loucos pelas ruas de Nova York. Aquele início de inverno trouxe mudanças inimagináveis. Depois de muitos anos pude vivenciar os pequenos prazeres da vida. Jamais pensei que iria sentir o ar fresco da manhã brincando no meu rosto e a liberdade do vento circulando pela minha pele. Por um breve minuto hesitei. Apesar do cansaço e do perigo não desistiria.
O futuro me era desconhecido, mas o passado. Ah! O passado estava deixando para trás, às pressas. As únicas coisas que levava era uma bolsa, o máximo de roupas que consegui vestir e as minhas memórias.
Sim, memórias que carregarei por onde for. Memórias de uma prisioneira. É isso mesmo, uma mulher que era obrigada a flutuar num aquário minúsculo distraindo passageiros entediados, briguentos, problemáticos… daquele infeliz e às vezes mau cheiroso trem. A minha presença contribuía para diminuir a distância, a morosidade que é viajar neste tipo de transporte; o barulho do apito ao aproximar da plataforma de embarque e desembarque, o cheiro da fumaça, os trilhos e sua eterna e repetitiva melodia, as curvas sinuosas; enfim, enfim…
Passava os dias, tardes, noites bailando tal qual uma sereia, só que vestida. Ao invés de seduzir o ingênuo público com minha voz, seduzia-os com a minha dança. No lugar do mar, um aquário. Os espectadores ficavam extasiados, encantados, com a minha pessoa. Via os olhares brilhantes, cobiçosos, estarrecidos, incrédulos, invejosos, furiosos … Olhos, sempre olhos a me despir e a me cobrir.
Algumas miradas ficaram impressas nas minhas retinas molhadas, ora de lágrimas, ora pela água do aquário.
Lembro-me de que estávamos passando por São Petersburgo, na Rússia e o meu olhar congelado mirrou o de uma senhora que vendia legumes em plena praça. A neve cobria praticamente tudo, mas ela tal qual a neve resistia. Luta desigual: sobrevivência versos fenômenos naturais. Apesar das condições impróprias o seu rosto transmitia alegria, dignidade e esperança. Por um instante nossos olhares se cruzaram, aí percebi o quanto era privilegiada. Trabalhava num ambiente seguro, água temperada e até um certo conforto.
Tinha mais vantagem do que aquela senhora de meia idade que estava enfrentando o inverno rigorosa e ainda por cima sem luvas. Um misto de ironia, pensei!
Peço a Paul para descansarmos um pouco, a corrida me tirou o fôlego, ou foi a emoção da sensação de liberdade? Não sei porque associei liberdade ao México. Sim, México lindo e querido se moro longe de ti, me diga que estou dormindo, (ouso iniciar uma canção) … País exótico. Fiquei surpresa e ao mesmo tempo tenebrosa ao ver aquela mulher moça de olhar brilhante e imponente. Ela era como eu, uma atração turística. Mas, o seu diferencial era que trabalhava na estrada, ao ar livre. Despertava a atenção devido a um detalhe: seu chapéu adornado de iguanas.
Sim, iguanas multicoloridas, de tamanhos variados, e vivas. Enfeitavam a cabeça dessa destemida guerreira. Arrepio só de pensar nestes bichos com seus olhos espertos e ousados. Penso que no íntimo gostavam de ser atração, roubavam a cena. Tomaram gosto pela fama e me parece que até davam um sorrisinho irônico, aquele meio de lado. Rindo dos espectadores atônitos por tanta imponência.
Avistamos uma praça. Aquelas árvores me reportaram à minha infância, mais precisamente aos meus seis anos, interpretando Maria, da peça João e Maria. Esqueci a fala, justamente no momento que descobríamos que estamos perdidos na floresta. Imediatamente improvisei, fechei os olhos e inclinei a cabeça para o alto, dando a impressão de contemplação. Um vento gelado como este levanta parte do meu vestido e do capuz. A plateia vibra. Como fui elogiada, naquele momento sabia que seria atriz e viveria histórias que não me pertenciam. Ganharia o mundo com a força do meu talento. Doce ilusão, mal sabia o que me aguardava. Afasto estes pensamentos.
Continuamos o trajeto. Ao passarmos por uma barbearia avisto os irmãos Garbosos, eram chamados e conhecidos por este apelido. Dupla de comediantes, devido a agenda lotada, utilizavam dos serviços do trem para viajar de uma cidade a outra. Quando estavam presentes a viagem ficava mais interessante e alegre. Ninguém conseguia ficar sério. Até eu, a triste bailarina do aquário, discretamente soltava várias gargalhadas. As bolhas espelhavam causando uma atmosfera surreal em tempo real.
Tudo que estava vivendo, às vezes me deixava fraca. Isto me fez pensar numa das cenas que mais me tocaram. Quando passávamos pelo Haiti vi com os meus próprios olhos lacrimosos a situação desoladora na qual o país ficou depois do tufão. Sim, foi desolador cruzar com o olhar resistente de um garoto.
Diante daquela situação ele ainda tinha forças para ajudar seus familiares a reconstruir o pouco que restara. Confesso, aquela lembrança me deu forças para seguir. Toda vez que me sinto desanimada lembro daquela criança e me recomponho.
Ah! A vida é mesmo estranha. Paul lembrou que tinha um dinheiro para receber de seu amigo chinês e tivemos que desviar a rota e agora estamos no bairro Chinatown. Pela janela da loja de Mei Xin vejo os olhares pequeninos, curiosos e interrogativos nos observando. Um arrepio percorre a minha coluna.
Lembro do nosso trajeto na China e de como as pessoas ficavam encantadas querendo me tocar. Quase fui vendida para um rico comerciante chinês. Ele comandava aquela província e não queria liberar a nossa viagem. Foi muito difícil a negociação. Paguei um preço altíssimo por isso.
Vislumbro uma movimentação. Seguro no braço de Paul. Ele inicia uma discussão com Mei Xin. Duas crianças se aproximam, observo que do outro lado da rua um homem sentado está atento ao que se passa aqui dentro, um outro escuta … de onde estou não dá para ver direito. De repente… ouvimos um disparo… Paul pega na minha mão e saímos correndo, sem olhar para trás e sem o dinheiro.
Corremos o mais rápido que aguentamos e assim, lembro do dia que conheci Paul, meu amado Paul. Ele estava comemorando o natal. Era um entardecer preguiçoso, a neve tinha cessado. Ele e os amigos noviços foram comemorar do lado de fora do mosteiro. Estavam brincando, cantando distraidamente. A roda girava, um dos noviços estava no meio. Ao me perceber Paul discretamente se desvencilhou dos outros, e veio ao meu encontro. Desde aquele momento seguimos correndo. Correndo dos outros, correndo contra os outros, correndo pelos outros, sempre em frente, sem saber como tudo isso vai acabar. Mas um dia tem que acabar. Sei que ao correr ao lado de Paul, corro para e com os braços da liberdade. Mas, será que existe liberdade?
No meio dos carros e das buzinas, ouço ao longe:
– Ei, vocês dois. Parem aí! É a…
…………………….
Devaneios de um instante. Rosilene Souza. (Do corpo ao corpus Coletânea organizada por Edna Domenica. Palhoça, SC: Rocha Soluções Gráficas, 2022, pp 55-57).