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Mãos nas damas

Dia de deixar grades para trás e dar rolé pelas ruas

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Autor/Imagem:
André Montanha - Foto Acervo Pessoal

Tico e Teco, meus neurônios sobreviventes de algumas centenas de bilhões, estavam impacientes na tarde de sexta, 20. Não viam a hora de o astro-rei se retirar por detrás da serra que circunda nosso quadradinho, para que pudéssemos, livres do calor infernal que nos tem atormentado nos últimos dias, darmos um rolê pelas calçadas e becos de Taguatinga.

O clima desértico de um Saara tupiniquim, com a umidade do ar bem abaixo dos índices aceitos pela OMS, todos devemos estar atentos a cuidados especiais. E dar um giro pelas redondezas não só refresca, como também é melhor do que a terapia proporcionada por um divã de analista. Apenas suponho, pois nunca estive em um.

Portanto, sol recolhido no horizonte, lá fomos nós – eu e meus inseparáveis Tico e Teco -, dar uma voltinha. O primeiro passo foi utilizar o controle remoto para abrir a grade de uma prisão imaginária. Nada comparado a Papuda ou qualquer outra unidade prisional. O fato é que as grades representam a prisão domiciliar que deixa do lado de fora os amigos do alheio, codinome, ladrões.

Os ferros na vertical, interligados com elos rígidos, provocam um sentimento de segurança, mesmo sabendo que se trata, para uns, algo do tipo autorefúgio. Então vamos lá. Nossa estrela maior se recolhendo, transformando o céu de Brasília em uma obra digna de Portinari. Nós três (Tico, Teco e eu) deixamos a grade de ferro para trás. Eu, sobre minha cadeira de rodas, e meus neurônios, discutindo no par ou ímpar que destino tomar.

Como dono dos neurônios (afinal, eles estão em meu cérebro; portanto, são parte do meu corpo), usei minha intuição. Na primeira curva da via identifiquei na quadra poliesportiva, entre outros grupos, os amigos que havia conhecido há poucos dias. Lá estavam João Sergio e Antônio Muller. Fui recebido efusivamente. E retribui com um aceno e um sorriso o carinho dos dois damistas.

Não pretendendo distrair meus parças, concentrados nas peças que, embora redondas, fazem lembrar a tese dos terraplanistas, fiquei observando sem dar pitaco, apesar da vontade de sugerir a um ou outro uma jogada diferente.

Estavam sentados à sombra de um pé de mangas recém-brotadas, jogando “Damas” em um tabuleiro de plástico, com as peças em plástico também, quando surgiu o tema: O que você acha das condições de adaptação nas grandes cidades do Brasil para o público PcD (Pessoas com Deficiência), perguntou João para Antônio. E arrematou: Qual a sua opinião sobre o assunto?

Antônio olhou para o tabuleiro, virou a cabeça e jogou a resposta no meu colo. “Responda você, André”, sugeriu.

Sendo eu um “locomotivado” pela minha mobilidade não tão boa, mas com a mente sã, expus meu raciocínio. Particularmente, afirmei, penso que todas as grandes capitais devem ser adaptadas em benefício dos PcD’s. Com os avanços que tenho acompanhado, observo que são muitos os estudos e pesquisas mas que, é o meu ponto de vista, sequer saem do papel.

Continuei afirmando que sou mais um PcD meramente esperançoso por mudanças. Vivo como mero espectador, uma vez que as promessas feitas pelos governantes nunca chegam. Como qualquer cidadão, tenho minhas vontades. Porém, temo que sejam, sonhos não realizáveis.

João, atento às minhas palavras, olhou-me fixamente nos olhos. Parecia ameaçado de um xeque-mate (embora os dois estivessem jogando damas) e refletiu mais sobre nosso papo.  E soltou essa: “Rapaz, não é que você tem razão?!”.

-A sorte, disse eu, é que tenho alguma condição, ao contrário de outros cadeirantes, que além de PcD’s, são portadores de verdadeiras necessidades especiais, como casa, comida, educação, saúde…

Já escurecia quando as luzes da quadra foram acesas. “João e Antônio (sugeri), tirem par ou ímpar. Sou enxadrista, mas gosto de pegar nas peças das damas. Joguei uma partida com cada um. Ganhei as duas. Os dois riram. Eu dei uma gargalhada. Foi quando Tico e Teco me alertaram.

Vieram as vozes lá do subconsciente. Está escurecendo. As calçadas têm buracos, as ruas têm buracos. Hora de colocar as mãos nas rodas e seguir em frente. Despedimo-nos na certeza de que outros encontros virão.

Agora, leitor (principalmente você, PcD como eu), lembre-se: sou o André, uma ‘verdadeira montanha’ de força de vontade. Notibras abriu este espaço para pessoas como nós. O espaço é nosso. Se desejar interagir, mande sugestões, mande seus textos. Meu contato (WhatsApp) é +55 61 98425-4895.

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