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Botequim da saudade

Dia de troco para nota graúda e lembrança musical atordoam Lázaro

Publicado

Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

̶ Lázaro, tira daqui, disse o freguês ao dono do botequim, do outro lado do balcão, esticando-lhe uma nota de 200 mil-réis.

̶ Mas qual…, indignou-se o homem, redarguindo, hoje é domingo, não tem movimento e estou sem troco agora.

̶ Então como é que faz?, devolveu-lhe o freguês, sabedor de que fiado, ali, era palavra suspeita e proibida.

̶ Que mania! Vai querer pagar 5 mil-réis com essa notinha de duzentos? É para se exibir para a mulherada? Você tomou duas cervejas e comeu um pão com ovo, não está tomando chá em Copacabana! Não tem dinheiro menor?

Criou-se o impasse. O freguês, de terno surrado, era o centro das atenções. Recebera uns extras na fábrica e tinha vindo uma nota de duzentos novinha, cheirando a banco americano. O retrato de Prudente de Morais estava até mais bonito. Não havia troco, no entanto. O caixa andava baixo. Lázaro, desconfiado, sentenciou:

̶ Assina uma letra.

̶ Ora, para duas geladas e um pão a cavalo… ê, ê…

O problema foi, enfim, resolvido. Lázaro ficou com a corrente do relógio do freguês em garantia. Azinhavrada, é certo, mas de valor sentimental. Ademais, o homem era habitué no estabelecimento. Seus sapatos conheciam cada quadradinho de ladrilho hidráulico do lugar. Lázaro permanecia irascível e fiado ali, nem amanhã.

Duas mesas além do balcão, mais à esquerda, a mãe de Lázaro encontrava-se sentada junto à nova nora e uma criança.

̶ Ela está magra, meu filho. Precisamos ver médico para essa menina. A boia precisa melhorar.

O dono do botequim arrepiava-se com a recomendação materna. Fora casado uma vez, com Almerinda. Um dia, Almerinda foi-se embora com um funcionário da Central do Brasil e, meses depois, apareceu Sônia, com filha de três meses no colo. Foi ficando, ficando e passaram a morar juntos, no anexo dos fundos do botequim, mais a matriarca. Isso durava quatro anos. A menina chorava, abrindo uma boca com janelinhas pela falta dos dentes da frente. Estava visivelmente enfermiça.

Lázaro não se apegara à menina e, internamente, penitenciava-se por isso. Não desgostava de Sônia. Ao contrário, até a amava. Ou talvez amasse, não sabia direito o que era tal sentimento. O que mais conhecia era a falta avassaladora que Almerinda lhe fazia. Não só pelo quanto gostara dela, mas também pelo despeito de a haver perdido.

Depois do episódio, largou um pouco de mão as obrigações e até o nível de seu botequim, antes mais frequentado, caiu. Mas o negócio resistia.

Sônia, calada, desviara da filha o olhar e, agora, observava um besouro subindo pela parede atrás do balcão.

Chegaram duas mulheres com um rapaz que trazia o violão num estojo.

̶ Traz uma branquinha pra mim aqui, nossa amizade! E uma Brahma pra tapear. Tem linguiça?

Maquinalmente, Lázaro já havia começado a pegar as garrafas. Conseguia prever o que os fregueses pediriam.

O rapaz sacou o violão e dirigiu-se ao comerciante:

̶ Como é, vamos relembrar aquele samba?

Lázaro, que também se virava no instrumento, havia sido compositor. Chegou a atuar na escola de samba da região. Mas ficou triste depois que Almerinda lhe deixara e nunca mais cantou nada. Ficou indiferente ao apelo do recém-chegado, que começou a tocar enquanto suas acompanhantes entoaram um canto, ligeiramente desafinado e dissonante, num idioma bem peculiar:

“Ah
Você teve o meu amor
Adepois me abandonou
Agora vai chorar de sôdade”

Lázaro bateu com força a mão direita sobre o balcão e gritou, agressivo:

̶ Querem calar a boca? Toquem e cantem qualquer coisa, mas tem que ser logo isso?

Os fregueses pararam, assustados, com franca decepção nos rostos. Haviam, sem querer, rompido um limite. Até a menina, no colo de Sônia, olhou atônita para o padrasto. Havia parado de chorar.

A companheira procurou mudar o clima.

̶ Eles fizeram sem querer, bem. Não queriam lhe magoar.

Lázaro recuperou, numa fração de segundos, a razão, envergonhando-se pela cena protagonizada. Dirigiu-se timidamente aos circundantes balbuciando um pedido de desculpas. Olhou mais diretamente para Sônia e disse:

̶ Desculpe, Almeri…

Interrompeu a fala quando percebeu que trocara o nome da mulher. Ela armou uma cara de muita tristeza e começou a chorar. A mãe do comerciante levou as mãos para o alto.

O rapaz do violão atacou em outro campo:

“Provei do teu veneno
Senti tua ausença
Marcou-me a memória
Com fria indiferença”

…………………………….

Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com

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