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Diabéticos vivem drama da cegueira e impotência

O diabetes costuma ser chamado de doença silenciosa porque metade dos pacientes não sabem da presença dele e muitas vezes só descobrem isso tarde demais. Não é incomum que a pergunta “você tem diabetes?” interrompa a fundoscopia (exame de fundo de olho) em consultório oftalmológico e a resposta seja um “não que eu saiba, doutor”. “E nesse momento o paciente é salvo pelo oftalmologista”, conta à BBC News Brasil a médica endocrinologista Rosane Kupfer, membro do departamento de doenças oculares da Sociedade Brasileira de Diabetes.

Outro caso comum de descoberta por acaso do diabetes silencioso é a disfunção erétil (ou impotência sexual). Há diversos fatores associados à dificuldade de o pênis ficar ou permanecer ereto, mas o excesso de glicose no sangue também pode lesionar pequenos vasos e dificultar a circulação de sangue no corpo todo, inclusive no pênis. Estima-se que esse mal afete metade dos homens com diabetes e seja a principal causa de disfunção sexual.

Mas por que o diabetes, um problema ligado à taxa de açúcar no sangue que afeta 17 milhões de pessoas no Brasil com idades entre 20 e 79 anos, pode impactar diversos órgãos do corpo, como os olhos e o pênis?

Primeiro, é preciso entender o que é o diabetes, mas em seguida a BBC News Brasil trará detalhes de sintomas e tratamentos dos impactos da doença na saúde sexual de homens e de mulheres também, além daquela que talvez seja a mais temida das consequências pelos pacientes: a cegueira.

Segundo a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia e a Sociedade Brasileira de Diabetes, um pâncreas em condições normais produz hormônios que regulam o nível de açúcar no sangue. Essa taxa varia quando se ingere um alimento, por exemplo. Mas no caso do diabetes mellitus, o corpo se torna incapaz de controlar esses níveis de glicose no sangue por não ter o suficiente ou não conseguir usar direito o hormônio que faz essa regulação, a famosa insulina. Isso leva a diversos desdobramentos problemáticos no corpo, entre eles doenças nos olhos que podem levar à cegueira e a disfunção sexual em homens e mulheres.

Os dois tipos principais de diabetes são o tipo 1 e o tipo 2. O tipo 1 frequentemente é diagnosticado na infância e na adolescência por fatores genéticos e sintomáticos, como sede e fome constantes, vontade frequente de urinar, cansaço, fraqueza, perda de peso e mudança de humor.

O tipo 2, que afeta 90% das pessoas com diabetes, têm poucos sintomas ou até nenhum e se caracteriza geralmente por seu surgimento mais lento e gradual. Por praticamente não ter sintomas, este é o tipo considerado silencioso que pode ser descoberto por acaso num exame oftalmológico ou por episódios de disfunção sexual. A principal causa (ou fator de risco) do tipo 2 é a obesidade.

O diabetes pode interferir de várias formas no funcionamento do organismo humano, mas isso se dá principalmente por duas vias: neurológica, porque o diabetes mexe com os nervos que regulam o funcionamento do corpo, e cardiovascular, pois piora a circulação do sangue — danos nos vasos sanguíneos podem provocar complicações nos olhos e também na função sexual.

“O diabetes é uma doença que afeta as estruturas vasculares do organismo, e essas estruturas vasculares são responsáveis por levar oxigênio para as células. Então, quando você tem a oclusão (bloqueio) de um vaso, vai faltar oxigênio para um determinado órgão, para um determinado tipo de célula, para todo o organismo”, explica Kupfer, da Sociedade Brasileira de Diabetes.

Especialistas lembram que, em 90% dos casos, todas essas doenças e consequências poderiam ser prevenidas ou atenuadas com mudanças na alimentação inadequada e sedentarismo. Ou seja, com alimentação saudável e prática regular de exercícios físicos.

Como citado acima, o diabetes pode interferir de várias formas no funcionamento do pênis, mas em linhas gerais são duas: a primeira é a neurológica porque o diabetes pode mexer com os nervos que regulam o funcionamento de órgãos como o pênis, por exemplo.

A segunda é a cardiovascular, devido a uma piora da circulação sanguínea que leva a um pior funcionamento do bombeamento de sangue para dentro do pênis, o que aumenta a pressão e gera a rigidez no ato sexual.

A disfunção erétil (a incapacidade que o homem tem de ter ou manter uma ereção suficiente para atividade sexual satisfatória) afeta mais da metade dos homens com diabetes, segundo uma análise de 145 estudos sobre o tema que foi publicada em 2017 na revista científica Diabetic Medicine. O diabetes é a principal causa de disfunção erétil em adultos.

“O homem pode ter uma falha, brochar (como se diz popularmente) de vez em quando. É normal porque ninguém é uma máquina”, diz à BBC News Brasil o médico Eduardo de Paula Miranda, diretor do departamento de andrologia da Sociedade Brasileira de Urologia. Quando isso pode ser um problema de saúde? “Quando começa a ser persistente, falhas umas atrás da outra, ao longo tempo e começa a interferir na qualidade de vida do sujeito”, responde ele.

No caso dos homens, quando acontecem alterações nesses vasos sanguíneos e nos nervos do pênis, a ereção enfrenta obstáculos por causa do estreitamento das artérias e da diminuição da circulação do sangue — e as terminações nervosas responsáveis pelo desejo sexual também podem ser afetadas.

Nesse caso de problemas de irrigação sanguínea, o pênis acaba com dificuldades de ficar e permanecer ereto. E a partir de então é recomendado que esse paciente também procure um médico especialista para avaliar o aparelho cardiovascular, explica Kupfer, da Sociedade Brasileira de Diabetes. “Ali pode haver pista para outros acometimentos do diabetes.”

A excitação sexual, é importante ressaltar, está ligada aos mais diversos aspectos, como estímulo visual, imaginação, toque e cheiro. Quando há um problema recorrente de impotência, especialistas ressaltam a importância de que seja feita também uma consulta médica a dois, quando se é um casal, pois as causas, além do diabetes, geralmente são orgânicas, psicogênicas (transtornos mentais) ou sexuais.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que a sexualidade é influenciada pela interação de alguns fatores, como biológicos, psicológicos, socioeconômicos, políticos, culturais, éticos, legais, históricos, religiosos e espirituais. Há também outras questões envolvidas, segundo especialistas, como identidades de gênero, sexo, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução.

Além de efeitos colaterais de remédios (como alguns para hipertensão) e de procedimentos cirúrgicos na bexiga ou na próstata. Recomenda-se que o diagnóstico seja feito apenas por médicos especializados.

Esse problema, porém, não afeta apenas homens e pênis. As mulheres também sofrem com o impacto do diabetes na função sexual, mas esse tema raramente é discutido, estudado ou divulgado.

Para Nick Oliver, especialista em metabolismo e diabetes da Universidade Imperial College London, no Reino Unido, há diversas razões para isso. Em editorial publicado na Diabetic Medicine, explica que há falta de compreensão sobre mudanças na função sexual feminina em decorrência do diabetes, desconforto em abordar o tema, tanto pela paciente quanto pelo profissional de saúde, e, por fim, falta de intervenções médicas com comprovação científica para tratar a disfunção sexual feminina.

Um estudo assinado por sete pesquisadores da Bélgica, Holanda e Austrália, publicado em 2021 pela mesma Diabetic Medicine, apontou que 36% das mulheres com diabetes tipo 1 relataram disfunção sexual, número maior que mulheres com diabetes tipo 2 e muito próximo ao número de homens com diabetes e impotência. Um estudo na Noruega, com menos pacientes, chegou a apontar a incidência de disfunção sexual em mais de 50% das mulheres com diabetes do tipo 1.

Para Miranda, da Sociedade Brasileira de Urologia, “o controle estrito e rigoroso do diabetes é fundamental para prevenir complicações da saúde sexual do homem e da mulher”. Ele explica que a saúde sexual tanto masculina quanto feminina está associada à saúde geral deles, e a prevenção passa pelo controle de comorbidades e da saúde física e emocional do paciente (mais especificamente alimentação saudável, atividade física regular, sono de qualidade e redução do estresse).

“A saúde mental também é um dos grandes determinantes da saúde sexual”, afirma Miranda. “Existe um problema na disfunção erétil que é: não importa o que levou o paciente a falhar, mas uma vez que ele falha, isso começa a afetar muito a autoestima e a autoconfiança dele, e então entra um componente psicológico muito importante que agrava ainda mais o problema.”

Os tratamentos da disfunção erétil podem ser de dois tipos: os não medicamentosos e os medicamentosos.

Os primeiros giram em torno de terapias. É sempre indicado que esse paciente tenha suporte terapêutico para lhe ajudar a lidar com o estresse, excesso de adrenalina e preocupação, que atrapalham a ereção.

No caso das abordagens medicamentosas, para homens há remédios disponíveis no mercado que são capazes de melhorar a duração, rigidez e capacidade de manter a ereção por mais tempo. “Eles melhoraram a circulação de sangue no pênis e aumentam a pressão dentro dos corpos cavernosos que são as câmeras da ereção”, explica Miranda.

Há pelo menos sete medicamentos disponíveis com diferentes características, sendo o mais comum o sildenafil (Viagra). Miranda alerta, no entanto, que esse comprimidos podem não funcionar no caso de pacientes com diabetes descontrolados e problemas mais severos nos nervos. “Muitas vezes esse paciente precisa ir para tratamentos farmacológicos mais intensivos ou invasivos, como as injeções que são administradas no próprio pênis na hora da relação sexual para poder ter uma ereção.”

A disfunção erétil aumenta com o passar da idade, mesmo sem diabetes. Em geral, a partir dos 45 anos, há maior ocorrência de homens com problemas de ereção. No caso do paciente com diabetes, quanto mais tempo ele enfrenta essa doença, maior é a chance de ele desenvolver problemas de ereção mais cedo ou mais severo. Isso pode ser atenuado caso o diabetes esteja sob controle.

Segundo o Instituto Nacional de Diabetes e Doenças Digestivas e Renais dos Estados Unidos, o diabetes afeta os olhos quando a taxa de glicose no sangue está muito alta e pode causar quatro doenças oculares: retinopatia diabética, edema macular diabético, catarata e glaucoma.

Uma pessoa com diabetes têm duas vezes mais chances de ter catarata e glaucoma, que pode ser uma complicação da retinopatia diabética que danifica o nervo óptico (estrutura do sistema nervoso que conecta o olho ao cérebro). Ambas as doenças, quando não tratadas, podem levar à perda de visão.

A cegueira é considerada uma das complicações mais graves e temidas do diabetes. “Se você perguntar para esse paciente qual é o seu maior temor, a maioria vai dizer ‘eu não quero ficar cego'”, explica Kupfer, da Sociedade Brasileira de Diabetes.

Mas como a lesão chega a esse ponto? No caso da retinopatia diabética, Rodrigo Jorge, professor da USP Ribeirão Preto, explica que a glicose em excesso no sangue machuca uma célula chamada pericito, que dá suporte ao menor vaso presente na retina, o capilar. Essa é uma das primeiras alterações nos tecidos humanos causadas pela doença.

Perdendo esse suporte e com a morte dessas células, ocorre uma alteração nesse capilar da retina, revestimento interno no fundo do olho responsável por transformar a luz em sinais que o cérebro interpreta para que enxergamos e compreendamos as coisas.

“A hiperglicemia machuca a parede do capilar, e nesse movimento a retina é machucada, mas não somente e a partir daí tem microangiopatias. Ou seja, um machucado na circulação: os vasos ficam frágeis e rompem”, explica o oftalmologista. “O primeiro sinal que se encontra no fundo do olho são pequenos pontos hemorrágicos ou os microaneurismas que são as dilatações na parede dos capilares da retina.”

Para compreensão da apresentação do aneurisma, Jorge faz uma analogia com uma bola de futebol. “Quando ela perde um gomo, forma uma protuberância e a câmera sai para fora. O aneurisma é isso.”

Kupfer, da Sociedade Brasileira de Diabetes, acrescenta que “o diabetes acelera o processo de envelhecimento dos vasos sanguíneos e pode provocar então pequenas isquemias (falta de oxigênio no tecido) na retina”. Uma das consequências da retinopatia diabética é um edema macular diabético (inchaço), principal causa de baixa de visão no paciente com diabetes. Outra é que a visão pode ficar turva.

Mas como se detecta tudo isso? Pelo exame do fundo do olho (ou fundoscopia) relatado no início desta reportagem. A retinopatia diabética é dividida principalmente em duas fases.

1.Não proliferativa – Sem novos vasos formados. No começo da retinopatia diabética, esses vasos podem inchar, vazar para a retina. Aqui podem ocorrer pequenas dilatações, isquemias (falta de oxigênio no tecido). Se a mácula (responsável por nos fazer enxergar com maior riqueza de detalhes, cores e nitidez) não for atingida, pode nem apresentar sintomas.

2.Proliferativa – Com novos vasos formados – “Se você abrir a retina e esticar, ela vai ficar que nem uma pizza. No meio dela há o nervo óptico, com a mácula ao lado. A circulação sai do nervo e vai para a periferia, a borda da ‘pizza’. Essa borda começa a sofrer com a falta de nutrição. As paredes dos vasos, as células se desunem e formam novos canais e vasos e esses novos vasos tentam nutrir essa retina que está sem suprimento”, explica Jorge, da USP Ribeirão Preto.

A cegueira, por fim, é causada pelo descolamento da retina. Os novos vasos que surgem têm poder contrátil. “Imagine uma folha de papel em uma mesa e de repente começa a crescer um tecido em cima dela e ele retrai. A folha de papel fica enrugada e algumas partes vão se separar da mesa, essa parte que separa é o descolamento. Só que é um tecido que está forrando o fundo do olho”, explica o professor e oftalmologista.

É possível prevenir essa evolução devastadora da retinopatia? Segundo especialistas, sim, com controle rigoroso da taxa de glicose no sangue e, por extensão, do diabetes. Recomenda-se também reduzir a taxa de colesterol elevada, controlar a hipertensão arterial e evitar o tabagismo, que aumentam o risco de doenças oculares e outros problemas de saúde.

“Se o paciente é hipertenso, tem que tratar a hipertensão. E se ele tem uma retinopatia, ele tem que ter um tratamento oftalmológico rigoroso para evitar que essa retinopatia evolua mal”, afirma Kupfer. Além disso, ela ressalta a importância do controle da taxa glicêmica: “A glicose bem controlada não vai acelerar o processo de envelhecimento das artérias”.

Jorge, da USP de Ribeirão Preto, reforça essa recomendação. “O paciente que controla melhor tem mais anos de doença sem complicação. As complicações estão relacionadas com a duração da doença. Quanto melhor você controla, mais tempo passa sem complicações. Por exemplo, há paciente com diabetes tipo 2 que em cinco anos desenvolve as complicações e há paciente que passa 20 anos e praticamente não tem complicação nenhuma. Isso com certeza se deve ao controle, com uma pequena percentagem ligada a características genéticas também. Mas o principal fator é o controle da glicemia.”

E quando a retinopatia diabética evolui, há tratamento possível? Jorge afirma que atualmente as duas principais estratégias são o laser e a farmacológica.

“No caso do laser, ele destrói a retina periférica (a borda da pizza). Como na retina não é possível amputar, a saída é queimar com o laser. Ao destruir uma retina que está produzindo o agente causador das alterações, o VEGF (que estimula a formação de novos vasos) diminui.”

A saída farmacológica é injetar um anticorpo contra a formação de novos vasos (VEGF). Essa opção é bem mais rápida, porém bem mais cara que o laser. “Os medicamentos intra oculares são uma realidade para poucos. Eles são caros e somente agora estão começando a entrar no SUS (Sistema Único de Saúde)”, explica Kupfer, da Sociedade Brasileira do Diabetes.

A endocrinologista explica que os medicamentos, por outro lado, têm um efeito indireto: manter o paciente sob vigilância médica. “Isso porque os medicamentos são administrados em geral várias vezes. Então, essa é uma forma também de manter o paciente ligado à sua saúde e de evitar o caminho para um desfecho da cegueira. Mas há um longo caminho até chegar nisso.”

E em que momentos as pessoas devem procurar um médico para avaliar a suspeita de retinopatia diabética? Há o surgimento de sintomas? Sim. Especialistas afirmam que pacientes com diabetes devem fazer consultas oftalmológicas todos os anos. Além disso, mudanças bruscas e repentinas na visão, pontos e flashes de luz indicam a necessidade de se buscar atendimento médico com urgência, pois podem estar ligados a um descolamento de retina.

Mas nem sempre os pacientes que dependem do SUS (sete em cada 10 brasileiros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE) conseguem acesso a consultas, acompanhamentos e tratamentos oftalmológicos.

“No SUS, por exemplo, essa especialidade é cada vez mais rara. O paciente que é tratado na rede particular ou por convênios de saúde, tendo mais conhecimento e mais acesso, têm mais chances ao fazer exames com um oftalmologista e evitar a evolução para uma retinopatia muito grave. Já o paciente que não tem acesso ao sistema de saúde ou tem, mas é um sistema de saúde sem oftalmologistas suficientes para atender a demanda, esse paciente vai ser muito prejudicado”, diz Kuper.

A melhor forma de proteger a visão e a função sexual é manter o controle do nível glicêmico, dos níveis de colesterol e pressão arterial. Aliados a uma boa dieta e exercícios físicos.

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