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Pregação latina

Dicionário do politicamente correto só ensina o que não presta

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

Quando menino interpretava a meu modo a expressão cortou o mal pela raiz. E fazia isso porque ouvia e não sabia traduzir o intrigante latim da autoridade eclesiástica do bairro, monsenhor Valdomiro Domingos Martins, homem acima de qualquer suspeita. Para mim, Secare malum in semine tinha a ver com gala, cientificamente conhecida por sêmen. Daí a confusão com o mal e o mau. Por isso, entendia que o mau que fazia o mal era punido com o corte do coiso – o pescocinho de frango – no talo, isto é, na raiz. Hoje eu sei que a locução significa evitar que algo negativo se desenvolva ou se espalhe.

Não vejo diferença, mas, por exigência do dicionário dos politicamente corretos, é melhor dizer que é a mesma coisa com outras palavras. Ou seja, o tal disse onário só ensina o que não presta. São as variações do português que pensamos para o que escrevemos e, principalmente, para o que gostaríamos de escrever. Já rapazote, quase apanhei ao informar à filha de uma vizinha que eu iria matar a cobra e mostrar o pau. Como a imaginei boa entendedora, achei que meia palavra bastaria. Não bastou. Eu quis dizer apenas que comprovaria como havia feito o que ela me pediu. Sem saliência ou maledicência alguma. Tudo com a pureza d’alma.

Imaginem se eu tivesse usado os ensinamentos do insuspeito monsenhor Valdomiro, cuja primeira lição foi me obrigar a repetir 150 vezes a tradução latina para a locução mata a cobra e mostra o pau. Assassinatus ofidium mostratis pênis foi o que aprendi e uso até hoje. Talvez eu tenha sido o bode expiatório da reverendíssima figura. Fiz vista grossa, engoli o sapo e ainda não me arrependi. Pelo contrário. Assimilei de tal forma o bizantino latinismo do monsenhor que hoje só bebo socialmente e bem longe da perdição da carne.

Parei de deixar o sujeito oculto após um dos últimos sermões do clérigo descendente de alemão, mas com sotaque capixaba. O recado foi duro, porém definitivo. Por meio da difusora administrada pela congregação dos povos originários, também conhecidos por beatos no cio, ouvi, na pregação em latim, que anus etilicus dominium num habet, significa em português tão somente que o de bêbado não tem dono. E não tem mesmo. Pelo menos é o que dizem os qui perdiderunt gloriam in bar, ou seja, os que perderam a honra no boteco.

Graças a monsenhor Valdomiro, hoje me mantenho como homem honrado. Pelo sim, pelo não, non possumos sentire onus quod portamos in dorso nostro. O que quero dizer é que não podemos sentir a carga que carregamos nas costas. Ex me (Tô fora). Prefiro intinge biscoctus buccellatum ou inculcare corydon. Em outras palavras, é muito melhor molhar o biscoito ou descabelar o palhaço. Sintetizando a ópera latinizada, Ofidium estaticus anurum num paparum. Para quem não é familiarizado com a língua indo-europeia, o termo simboliza o ócio em grau avançado: cobra que não anda não engole sapo.

Embora ainda permaneça vinculado aos ensinamentos do imaculado monsenhor, não sou desses que fica cercando o Lourenço à espera de um milagre. Como a vida é uma coisa que quanto mais se estica mais curta fica, tenho cruzado um dia sim e outro também. Às vezes, tiro folgas nas madrugadas das sextas-feiras bissextas. Não sei se me entendem, mas ainda balanço a castanhola e sacudo o sacolé com a destreza de um franciscano no desfile carnavalesco da Sapucaí. Já fui melhor, mas ainda sou eficiente. Como estou menos mentiroso do que antes, tenho de confessar que, na hora do cruzo, o pescocinho de frango vem apresentando uma simbólica semelhança com o cartão de crédito: é só aproximar e ele já finaliza a compra.

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Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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