Sujeito seminovo
Dificuldade de ter juízo em mundo sem juízo vira dilema diário
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emJá bem distante dos cueiros, uma das piores imagens de minha infância era vislumbrar o despertar de meu avô Aristarco Pederneira Araújo. Suas cuecas samba-canção (desconheço a origem do nome) eram assustadoras, como se fazia assustador o que brotava de seu interior. Além do esquálido poleiro, havia uma chocadeira que fazia tempo não dava pinto. Cenário feio, mas interessante, pois me remetia a um futuro distante, mas revelador. A pergunta que não queria calar era óbvia: O que usaria quando crescesse? E o que sentiria quando, a exemplo do velho portuga, deixasse de ver a vulva e me fixasse somente na uva?
Como não acreditava no envelhecimento de jovens, tinha poucas dúvidas a respeito da virilidade eterna e, principalmente, da desnecessidade dos antigos cuecões. O tempo me fez perceber que acertei somente na segunda questão. Também me levou a descobrir que, apesar de considerar justa todas as formas de amor, o modus operandi é diferente. No tempo do meu avô Aristarco, a mulher para casar não podia ter beijado outro homem. No tempo do meu pai, a mulher tinha de ser virgem. Hoje, se for mulher já está bom. Caramba! Lembrar de tudo isso é sinal de que estou ficando velho, quase um maracujá de gaveta.
O bom da evolução físico-espiritual é a promessa de menino. Aos pés do altar, jurei que, apesar de respeitoso, seria um velhinho sem juízo. E, já naquela época, eu tinha meus motivos. A televisão e o rádio eram menos permissivos. No entanto, mesmo com o conservadorismo da dita dura, as sutilezas dos redatores, programadores e dos compradores de “enlatados” conspiravam a favor da juventude. Por exemplo, achava improvável alguém me exigir juízo se a TV mostrava o Tarzan andando nu, a Cinderela chegando meia noite, a Branca de Neve morando com sete homens e o Ali Babá roubando com ou sem seus 40 ladrões.
Como era possível eu ser ajuizado vendo o Pinóquio mentir, o Batman de mãos dadas com o Robin, dirigindo a 320 km/h? Como fugir da cannabis assistindo o Popeye fumando uma ervinha estranha e ficando doidão? A falta crônica de água no subúrbio do Rio de Janeiro beneficiava os comparativos com o Cascão, que detestava banhos. Aceitar o Cebolinha falando errado não era de todo estranho. Muito pior era engolir a Mônica ensinando as meninas do bairro a arrepiar os meninos. A sorte delas é que nenhum parlamentar de então pensou em uma Lei João do José.
Cresci com essas dubiedades na cabeça. Afinal, se não era permitido tipo algum de sacanagem contra o semelhante, por que meus pais e meu vô permitiam que eu visse as falcatruas do Dick Vigarista? O politicamente correto tinha dois pesos e duas medidas. Naquele tempo, quem namorava e noivava tinha obrigatoriamente de se casar. Amancebar, nem pensar. Porque nunca cobraram isso do Pato Donald e do Mickey, ambos amancebados. Um enrolou a Margarida durante toda minha infância. Soube recentemente que o outro até hoje enrola a Minie. Deixa pra lá. Embora somente até as 10 horas da noite, nasci para ser selvagem. Por isso, o peso da idade não me faz parecer envelhecido.
Me tornei um clássico, um sujeito seminovo. Simples assim. Cheguei à conclusão de que abrir a geladeira é o melhor para mim. Historiador da vida alheia, discordo veementemente da tese de Aristóteles, para quem os idosos não são confiáveis. Por quê? Percebi que não significo risco algum quando, ao cortar uma cebola, a vi chorando. Estou naquela fase de fera na cama: faço xixi para marcar território. Portanto, sou tão confiável que, para atender os pedidos médicos de exames de fezes, urina e esperma, me limito a levar minha cueca usada na noite anterior. Antes que perguntem, esclareço que não é samba canção. O que sei é que os crics, crocs e crecs do pescoço, do joelho e do braço são a prova de que estou crocante. Tenho saudades dos velhos tempos sem a inteligência artificial, mas meu medo maior é ser colocado em um asilo sem wi-fi