Estamos em tempos de hipérboles: depois que “Veja” declarou o “mensalão” como o maior escândalo da história, o escândalo da Petrobras deve ser declarado o maior do universo. Entretanto, para que a opinião pública não seja levada pela mistificação midiática, convém estabelecer uma distinção fundamental: enquanto o “mensalão” foi uma narrativa inventada no Judiciário para ter efeito político, o escândalo da Petrobras é uma devassa político-administrativa que tem uma considerável dimensão financeira, e imenso efeito moral.
Repassemos inicialmente a narrativa judicial do “mensalão”. Havia três núcleos – político, publicitário e financeiro – operando articuladamente para comprar votos de parlamentares em projetos de interesse do Governo. O dinheiro viria da Visanet, um fundo supostamente do Banco do Brasil para divulgar o cartão Visa, e de dois empréstimos ao PT do Banco Rural e do BMG, creio que de pouco mais de R$ 3 milhões, supostamente em troca de facilidades no Governo que seriam articuladas por José Dirceu. Marcos Valério era o operador.
Essa narrativa parece muito convincente, exceto por um detalhe: não existe nela nada de verdadeiro. Visanet não é do Banco do Brasil, e os R$ 74 milhões que teriam sido desviados dela para o esquema do “mensalão” na verdade tiveram destinação, comprovada em auditoria, para pagamento de publicidade. Os empréstimos dos bancos eram operações de financiamento ao PT legais. Portanto, não houve desvio de recursos públicos. Houve, sim, caixa dois privada. Mas caixa dois privada é irregularidade eleitoral à altura de qualquer tucano, não crime tipificado no Código Penal – algo que só agora a Presidenta Dilma está propondo.
A alegação de compra de votos de deputados do PT pela direção do PT beira o surrealismo. A relação que os procuradores do “mensalão” estabeleceram entre saques de parlamentares autorizados pelo tesoureiro do PT (isso seria o “mensalão”) e a votação de alguns projetos de interesse do Governo na Câmara é um construto absurdo a partir de uma correlação espúria. Não tendo havido corrupção ativa, também não pode ter havido corrupção passiva. Não tendo havido envolvimento de dinheiro público, não pode ter havido peculato. O “mensalão”, segundo a voz autorizada de Roberto Jefferson, não existiu. Eram saques isolados para pagar restos de despesas de campanha de alguns parlamentares do PT e aliados.
O cúmulo da degradação do processo judicial do “mensalão” foi a condenação de José Dirceu segundo um princípio jurídico truncado, “o domínio do fato”. Por esse princípio, o chefe é pessoalmente responsável pelo ato praticado pelo subordinado. Não sei qual a relação de hierarquia que havia entre o Chefe da Casa Civil e os supostos operadores partidários do “mensalão”. Mas ouvi uma das ministras do Supremo dizer: Não posso conceber que Dirceu não soubesse… Assim, condenou o réu na base do achismo. Entretanto, não basta ser chefe, conforme explicou o jurista alemão especialista no tema que esteve no Brasil durante o processo. É necessário ter prova da participação efetiva no crime, conforme esclareceu o colunista Jânio de Freitas. Aqui o STF se dispensou da tarefa de encontrar provas contra Dirceu. Condenou-o por achismo e por ser Chefe da Casa Civil, mesmo porque o tráfico de influência de que foi acusado não teve objeto.
Não vi uma rebelião da opinião pública brasileira em face desse estupro da Justiça. O próprio PT ficou intimidado e quieto. As consequências agora são evidentes no caso do escândalo da Petrobrás. Os donos das grandes empreiteiras estão sendo presos e serão processados. Se o que o Supremo fez com Dirceu é um precedente a ser seguido, todos serão condenados, mesmo que não tenham relação direta com os crimes praticados na sua empresa. No limite, ninguém com responsabilidade de chefia no Brasil escapará do risco de ser condenado por eventuais crimes, ou supostos crimes de seus subordinados. Esse é o principal legado do mensalão, uma jurisprudência de ditadura.
Quando falo sobre isso as pessoas se espantam. Primeiro, perguntam o que me leva a questionar uma decisão tão “transparente” do Supremo Tribunal, construída ao longo de quatro meses diante de câmaras de televisão e de toda a imprensa escrita do país? É justamente por isso, respondo. Se não houvesse televisão os rumos do processo seriam outros. Assistimos a um espetáculo de extrema vaidade, o procurador e os ministros travestidos de astros de televisão, falando não dos autos ou para os autos, mas para a plateia nacional. A maioria – a maioria que condenou – não quis perder a oportunidade de ser “duro” para com os grandes, ou seja, contra a “arrogante” cúpula do principal partido do Governo. A boca pequena dizia-se que Dirceu era arrogante. Acontece que arrogância não está capitulada no Código Penal.
A outra razão pela qual me incomodei com esse processo é que pertenço a uma tradição de jornalistas que não se conforma com o massacre de seres humanos cuja inocência é negada por simples manipulação orquestrada da opinião pública com recurso a técnicas nazistas. Não estou sozinho. É dessa tradição jornalistas como Luís Nassif, Jânio de Freitas, Paulo Henrique Amorim, Raimundo Pereira, Maria Inês Nassif, entre outros. Nenhum de nós tem partido e nenhum de nós tem simpatia especial pelo PT. Mas nossa característica comum é não nos comportarmos como manada buscando, no limite do possível, algum grau de imparcialidade na notícia e na opinião.
Se o “mensalão” não existiu, o escândalo da Petrobras é um excesso. Não é um crime qualquer. A Petrobras é um ícone da brasilidade. Nada se lhe compara nesse ponto. É parte de nosso orgulho nacional. Não só por ter-se tornado grande, a maior empresa da América Latina, uma das maiores do mundo, mas porque está na fronteira da tecnologia em pesquisa de petróleo em águas profundas, o que traça um vínculo entre o presente e o futuro da empresa nesse campo. O que aconteceu na Petrobras é um crime de lesa-pátria. O que era um elemento central de nossa vaidade tornou-se fonte de nossa vergonha. Este, sim, é o maior escândalo de nossa história, não pelo dinheiro envolvido (estão refazendo as contas e já não se fala em bilhão, mas milhões) mas pelo efeito moral.
Entretanto, o tamanho incomparável desse escândalo não autorizaria promotores e policiais federais a usá-lo, em conluio com “Veja”, como instrumento político contra a Presidenta Dilma e o ex-Presidente Lula. Nesse aspecto, tivemos uma reprodução do “mensalão”. A mesma técnica nazista de distorcer fatos e repeti-los à saciedade até que a opinião pública, encharcada pela manipulação, deixa de pensar nos fatos em si e capitulem à versão. A Presidenta teve uma justa reação ao anunciar que processaria “Veja” pela capa sinistra às vésperas da eleição sustentando que ela e Lula sabiam dos crimes na Petrobras. A opinião pública brasileira espera que a Presidenta lave sua honra num processo exemplar. Se não cumprir o que prometeu ela estará coonestando a infâmia.
José Carlos de Assis