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Diretas Já mostra o caminho dos quartéis aos militares

O Brasil já estava sob comando dos militares há quase 20 anos, quando a insatisfação da população irrompeu. Paulatinamente, as ruas foram tomadas por protestos que cobravam eleições diretas e o fim da ditadura. Era a explosão de uma resistência cívica que nunca cessou mesmo nos anos mais duros do regime militar, como na campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita que resultou na lei aprovada no governo do general João Batista Figueiredo, em 1979.

Agora, no entanto, o clima era de que a hora havia chegado. No início dos anos 1980, a campanha “Diretas Já!”, iniciada a partir da proposta de emenda constitucional apresentada pelo deputado Dante de Oliveira, tomava corpo. A proposta alterava o sistema de eleição instituído pelos militares, no qual um colégio eleitoral formado por parlamentares era que elegia o presidente da República. A premissa era a de que o povo também votava para presidente, ainda que indiretamente, já que havia escolhido os parlamentares.

O deputado Ulysses Guimarães (MDB-SP) e o então líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva deram início à campanha ainda no Congresso e foram atraindo o apoio de outros líderes políticos, artistas e intelectuais. O movimento cresceu à medida em que se aproximava a data da votação da emenda, 25 de abril de 1984.

A mobilização popular levou milhares de pessoas aos cerca de 30 comícios organizados em 1983 e 1984.

“O movimento ganhou força a partir de janeiro de 1984, quando os governadores, particularmente [Franco] Montoro, em São Paulo; [Leonel] Brizola, no Rio [de Janeiro] e Tancredo [Neves], em Minas, aderiram e houve uma série de manifestações em todo o país. No entanto, a proposta inicial veio do PT [Partido dos Trabalhadores] e de setores mais de esquerda”, ressalta o professor de sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marcelo Ridenti.

A mobilização contou com o apoio de várias instituições, entre elas, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Quase todos os setores da sociedade, de todas as classes sociais, participaram.

“Para entender isso, é preciso pensar primeiro em uma insatisfação popular grande que havia com o desgaste da ditadura, que já durava quase 20 anos. Agravada pelo fato de que havia, no começo dos anos 1980, uma certa crise econômica que afetava a inflação, a vida das pessoas. E tinha o fato de haver governos de oposição em estados importantes apoiando. Enfim, havia uma vontade geral de mudança”, destaca Ridenti.

Apesar da inflação, a ditadura mantinha uma política extremamente restritiva em relação aos salários. O descontentamento gerado pela política de arrocho salarial e a restrição aos direitos civis acabaram desaguando nos grandes movimentos sociais iniciados pelos metalúrgicos de São Bernardo e que se espalharam pelas demais cidades industriais da periferia de São Paulo, especialmente do ABC (Santo André, São Bernardo e São Caetano).

“Não tínhamos direito nenhum. Dentro das empresas, vivíamos a conjuntura da ditadura militar. Na Mercedes Benz, era um verdadeiro quartel do Exército. A pessoa indicada pela Mercedes para fazer contato com a diretoria do nosso sindicato era um general do Exército, o general Queiroz”, conta Djalma Bom, ex-diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema e ex-trabalhador da Mercedes Benz.

Bom destaca que, além de atuar dentro das fábricas, as greves desafiavam o regime militar. “As greves dos metalúrgicos eram econômicas. Lutando por melhores salários e melhores condições de trabalho. Mas a conjuntura daquele momento, com vários setores da sociedade brasileira que se posicionavam pela redemocratização do Brasil, acabou levando os companheiros a se juntarem ao movimento estudantil, aos intelectuais, aos companheiros da igreja, e aos demais setores insatisfeitos da sociedade”, ressalta.

A pressão para que o Congresso aprovasse a emenda das Diretas foi tomando conta do país. E encontrou um caminho de certa forma aplainado pelo movimento sindical. Os primeiros comícios das Diretas Já! ocorreram em março de 1983. Em junho, uma frente suprapartidária reuniu os governadores Leonel Brizola, do Rio de Janeiro, e Franco Montoro, de São Paulo, e o presidente nacional do PT, Luiz Inácio Lula da Silva.

Outros governadores se engajam ao movimento, entre eles Waldir Pires (PMDB), da Bahia; Roberto Magalhães (PDS), de Pernambuco; José Richa (PMDB), do Paraná; e Gerson Camata (PMDB), do Espírito Santo.

Jornalista e autor do livro Diário da Campanha das Diretas, Ricardo Kotscho, disse concordar com a tese do escritor Laurentino Gomes, autor do livro 1889: “A Proclamação da República foi em 1889, mas a verdadeira fundação da República brasileira se deu em 1984, quando povo foi para a rua. Na proclamação, o povo não foi. Foi uma coisa de meia dúzia, o povo ficou assustado com o que estava acontecendo. E, em 1984, as autoridades ficaram assustadas, o povo tomou o destino na mão”, destaca.

O PT, o PMDB e o PDT fizeram um encontro pelas Diretas em 27 de novembro de 1983, no Estádio do Pacaembu (SP), com cerca de 15 mil pessoas. Mesmo sem grande cobertura da imprensa, as manifestações ganharam corpo – com a divulgação boca a boca e panfletos – e chegaram a reunir milhares de pessoas. Os comícios gigantes, na reta final da campanha, ocorreram no Rio de Janeiro, em 10 de abril; e em São Paulo, em 16 de abril de 1984.

“É preciso lembrar que, naquela época, não tinha celular, não tinha internet, Facebook, essas coisas todas. A grande imprensa, no início, boicotou a campanha das Diretas. Procurou esconder. Não mostrou a dimensão que tinha esse movimento. Com exceção da Folha de S.Paulo, onde, por sorte, eu trabalhava”, diz Kotscho, que acompanhou todos os comícios pelo país.

No Rio de Janeiro, milhares de pessoas se concentraram na Praça da Candelária, no maior comício do estado. Em São Paulo, os organizadores contabilizaram mais de 1 milhão no Vale do Anhangabaú. Nos palanques, ao lado dos políticos, artistas e intelectuais discursavam.

“Uma coisa dava para sentir: a cada comício ia crescendo o movimento, cada cidade queria fazer mais do que a anterior. Se, por exemplo, em São Paulo teve 300 mil pessoas, Belo Horizonte queria pôr 500 mil pessoas na rua. Aí o Rio colocou 1 milhão, aí São Paulo depois, 1,5 milhão. E assim por diante. As pessoas queriam participar. Não precisava chamar”, ressalta Kotscho.

Historiadora e pesquisadora, Janaína Teles tinha 16 anos na época dos grandes comícios das Diretas e participava do movimento estudantil. Ela lembra como eram as ações dos estudantes em apoio ao movimento. “Eu ia todo dia no final da tarde para a Praça da Sé e montava uma urna gigante, bem grande, um metro e meio de altura. E a gente tinha um palanque pequeno, um microfone e a gente soltava o microfone para todo mundo”, diz a historiadora da Universidade de São Paulo (USP).

Apesar da pressão popular, a Emenda Dante de Oliveira, que estabelecia eleições diretas para presidente da República no Brasil, é derrotada na madrugada do dia 26 de abril de 1984. Para que fosse aprovada, era necessário o voto favorável de dois terços da Casa, composta por 320 deputados. Com 298 votos a favor e 65 contrários, a emenda foi rejeitada. Para se alcançar a maioria, faltaram 22 votos.

“As Diretas Já foram derrotadas porque não houve volta da eleição direta, mas geraram uma consequência política que foi a vitória de Tancredo [Neves] nas eleições, o que é considerado, em geral, como fim da ditadura no Brasil”, destaca o professor Marcelo Ridenti, da Unicamp.

Fafá de Belém, umas das artistas mais atuantes nos comícios das Diretas, lembra do clima que tomou o país após a derrota da Emenda Dante de Oliveira. A cantora foi intérprete da música Menestrel das Alagoas, de autoria de Milton Nascimento e Fernando Brant, que virou símbolo das Diretas.

“Não houve quebra-quebra. Houve um luto coletivo. Quando o colégio eleitoral não aprovou as diretas, foi uma aula de insensibilidade de alguns. Naquela altura, eu era menina, eu fiquei tão indignada, tão revoltada, que eu não conseguia falar”, relata.

Para Fafá, mesmo derrotado, o movimento das Diretas saiu vitorioso. Conseguiu colocar o voto direto definitivamente em pauta. “O voto popular já estava dentro de todas as veias, dentro de todas as vozes. Era o país explodindo, se reconhecendo, retomando o verde-amarelo, retomando o Hino Nacional, retomando os símbolos pátrios que tinham sido usurpados pela ditadura.”

Com a rejeição da emenda, a eleição para presidente da República de 1985 ocorre de forma indireta. A chapa oposicionista, encabeçada por Tancredo Neves (PMDB-MG), derrotou, em 15 de janeiro de 1985, a do ex-prefeito de São Paulo Paulo Maluf (PDS), candidato que tinha o apoio dos militares.

“Houve frustração e resultados políticos muito mais conciliadores e moderados do que se queria inicialmente. Mas, ao mesmo tempo, gerou a eleição indireta do Tancredo e depois, como desdobramento, a própria constituição de uma Assembleia Constituinte no Brasil, que viria em 1988”, destaca o professor da Unicamp.

Bruno Bocchini, ABr

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