Assim que decidiu atender ao pedido de produtores alemães para criar um álbum com o que o final dos anos 1970 e quase todos os de 1980 produziram de melhor em música de rádio FM romântica no Brasil, Ed Motta foi ao próprio santuário, logo ali, a um palmo da cama.
Investigou a coleção de 30 mil discos que toma as paredes de seu apartamento no Jardim Botânico – basicamente tudo o que existe a seu redor, tirando a TV, o banheiro e a cozinha – e puxou um álbum de fundo azul com um jovem de calça jeans sentado no chão e um nome grafado em amarelo: Biafra.
A coletânea encomendada para o mercado europeu com o nome de Too Slow To Disco saiu no exterior em CD, vinil e Spotify com críticas elogiosas. A publicação britânica Record Collector a considerou a “reedição do mês” e os sites especializados foram atrás com avaliações entre quatro e cinco estrelas, no início de um movimento curioso. Depois de Biafra e sua Leão Ferido, entraram Filó Machado e sua Quero Pouco, Quero Muito; Roupa Nova, com Clarear; Banda Brylho, com Joia Rara; Jane Duboc, com Se Eu Te Pego de Jeito; Kiko Zambianchi, com Estreia; e Guilherme Arantes com Coisas do Brasil.
E o que há de novo nessas velhas canções? Primeiro, o fato de estarem todas elas em uma compilação brasileira fazendo sucesso na Europa. Desta vez são eles, muitos nomes que a própria opinião crítica no Brasil ainda tem dificuldades em reconhecer como produtores de uma música popular relevante, e não Jorge Benjor, Mutantes, Tim Maia, João Gilberto ou Tom Jobim, a desenhar um Brasil pop de exportação. Segundo, ter um fio ligando Filó Machado a Roupa Nova, com pontos em Rita Lee e Roberto de Carvalho, Cassiano e Altay Veloso, é um ensinamento aos ouvidos que deixaram se levar pela máxima de que não havia inteligência nas rádios FM dos anos 80.
Biafra estava lá em 1981. A canção Leão Ferido, feita por ele e Dalto, foi uma das que mais tocaram no ano a partir da Rádio Cidade do Rio. Aqui, sua imagem criada sobretudo em programas de auditório o associaria a uma cantor pop que praticamente enterraria a destreza harmônica de Leão Ferido. Lá fora, os europeus piraram. “Isso acontece porque eles, fora do País, só ouvem a música, sem imagem ou filtro algum da época. É apenas a música”, diz. “Foi um momento em que podíamos ser sofisticados e populares ao mesmo tempo, como foram os Beatles.” No time que o acompanha na gravação, nomes dignos de seleção: Lincoln Olivetti, o papa da década, nos teclados; Robson Jorge na guitarra; Paulo Braga na bateria; e Serginho Trombone.
Na outra ponta da história, Filó Machado aparece com Quero Pouco, Quero Muito, música sua para letra de Judith de Souza, de seu disco Origens, de 1983. Filó, então com 32 anos, já era uma potência criadora de ritmos ao violão e de um pensamento harmonizador impressionante que lhe garantia respeito no meio, mas que não parecia suficiente para aproximá-lo de um público maior. Seu filho Marcelo, com 9 anos, faz a contagem e a música começa nas alturas, com a parte instrumental executada pelo Placa Luminosa.
Uma apresentação para os músicos e executivos de gravadoras em Canela, no Rio Grande do Sul, rendeu um fã inusitado. “Jamelão. Depois de me ouvir tocar essa canção com a banda, veio me abraçar todo emocionado.” Ed Motta define Filó como “o mergulho mais profundo da piscina”, que o Brasil “criminosamente não conhece nem um terço”. Ele diz que decidiu abrir a coletânea com sua música para, propositalmente, fazer os ouvintes perceberem o artista logo no início. “Não é ajudá-lo. Ele é que me ajudou a chegar à música que eu tenho hoje.”
O que fazem esses artistas é algo que os europeus, japoneses e norte-americanos chamam de AOR, uma sigla que em tradução livre não explica tudo: album-oriented radio, ou disco orientado para tocar nas rádios românticas das madrugadas. Assim, os estrangeiros levam muito a sério também artistas como Christopher Cross, Doobie Brothers, Lionel Richie, Manhattan’s e muito do que começa a entrar na programação de emissoras como, em São Paulo, Alpha FM e Antena 1, a partir das 22h. As love songs equivalem no exterior às pop bossa no Brasil, mas tudo é chamado de AOR, um setor para o qual qualquer artista pode entrar mesmo sem saber exatamente o que significa.
A seleção de Ed Motta tem, por exemplo, algo que pode estar no limite do AOR brasileiro. Atlântida, 1982, de Rita Lee e Roberto de Carvalho, é classificada em sites de pesquisa internacionais como “latin, funk, soul”.
Não está entre as músicas mais tocadas da dupla, mas foi o que parou na rede de Ed Motta. “Sei que eles nunca fora de escutar Steely Dan, mas essa música parece ter saído de lá”, arrisca Ed. Roberto de Carvalho confirma as suspeitas, ele e Rita não ouviam Steely Dan. “Acho que eu nunca ouvi muito nada”, diz, para se refazer. “Ouvi Stones e, antes, Beatles e Jimi Hendrix, mas nunca soube muito de AOR.” Antes que Atlântida tivesse a base eletrônica reta, ele diz que tentou fazê-la ganhar uma segunda parte de tango. “A bateria não era como ficou, mas o tango não dava certo, quebrava muito, e aí ficou a bateria reta mesmo.”
O típico AOR Coisas do Brasil salvou Guilherme Arantes de um destino talvez menos glorioso. Por um lado, os roqueiros que o conheciam do grupo Moto Perpétuo cobravam dele postura rock and roll. Por outro, depois de Cheia de Charme, em 1985, a gravadora CBS queria transformá-lo em um galã romântico, submetê-lo a um “projeto Julio Iglesias”. “A palavra rock me perseguiu como uma peste, e Coisas do Brasil representou minha vitória diante dessa peste. Depois de ouvir sua pop bossa, Tom Jobim, que nunca saberia o que era o tal do AOR, falou ao seu ouvido: ‘Arantes, você é um batuta… Essa aí eu também queria ter feito, rapaz’ “