Notibras

Distopia de quem vive com a própria opressão

“Que sons estranhos me puxam para fora? Seria aquela luz a saída do labirinto? O que viria antes da morte ou após a vida?”

Neyla acordaria no início da tarde. Tomaria café requentado. Mijaria em jorros alternados. Acenderia um cigarro e fumaria calmamente. Súbito, o desespero: Não há fumaça, nem sabor, nem chama, nem luz, nem movimento, nem anjos eleitos ou caídos para espantar… Nem o tic-tac do relógio na parede do tempo?

Passado o desespero, Neyla acenderia velas vermelhas e entoaria sete cânticos vitorianos. Chorados. Lentos. Quase zens.

A empregada de Neyla não pegaria o trem no subúrbio e não chegaria a tempo de salvar Neyla da fúria invasora. Na delegacia, ela não diria que há dias a patroa repetira o mesmo ritual:

“Dona Neyla fazia sempre assim; acordava tarde, mijava em jorros, acendia o cigarro e fumava despreocupada; depois… Ah! Sei não, meu!”.

Neyla, como todos os mortais, deliraria e tentaria sonhar a maior parte do tempo:

Como seria desafiador fazer a barba sem ter barba? Pegar a dentadura no copo d´agua e embutir na boca tendo ainda todos os dentes perfeitos? Arregaçar o prepúcio para lavar a glande sem ter pênis?

Após o delírio, Neyla levaria o cachorro para tomar cerveja.

Neyla cortaria as unhas das mãos e dos pés pela primeira vez em décadas.

Vaidosa, pintaria os cabelos de verde ou vermelho ou ainda amarelado-pálido. Pensaria viajar por entre mosaicos e caleidoscópios que, por instantes, sugeririam certas referências passageiras.

Neyla não saberia, mas provocaria estranhamentos:

Seriam mistérios d´alma? Coisas do inconsciente? Sentidos forjados em uma dimensão metafísica? Sensações travadas entre o tapa, o afago e o beijo? Qual a hora decisiva de chegar e o segundo inexato da partida?

Neyla sentiria fome de comida e inventaria sobre Deus, fixando as retinas dos olhos da freira anã, após um rápido hambúrguer e coca-diet num fast-food. Neyla não saberia.

De fato, a empregada de Neyla não viria. Os bombeiros não chegariam para salvar Neyla da fúria devastadora. A polícia não abriria o inquérito e jamais desvendaria o mistério. A imprensa não teria fatos para noticiar.

Neyla desconheceria as almas dissimuladas dos invasores de corpos, os livros malditos jamais escritos e os filmes para sempre inacabados. Tão pouco sofreria pelos dilemas morais dos cachorros viciados em cerveja.

Neyla não assombraria o mundo com suas posições de vanguarda.

Por um segundo pensaria:

Que sons estranhos me puxam para fora? Seria aquela luz a saída do labirinto? O que viria antes da morte ou após a vida?

Neyla jamais seria.

A mãe de Neyla acordaria no início da tarde. Tomaria café requentado.

Mijaria em jorros alternados. Acenderia um cigarro e fumaria calmamente.

Entraria no Whatsapp, após ter abandonado para sempre suas excêntricas intuições sobre tempos passados, presentes e futuros.

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