Em um dia qualquer de 1973, soubemos que nossa família se mudaria de Taguatinga para o Guará 2. O fato, decidido por nossos pais, em alguns dias se tornaria realidade, representando para eles um significativo progresso de vida, pois abandonaríamos o barraco de madeira e, finalmente, depois de 14 anos morando no Distrito Federal, teríamos nossa casa de alvenaria.
Confesso que foi com tristeza que vi o caminhão de mudança parar à nossa porta. Naquele momento, tive a consciência de que minha vida se transformaria; só não podia mensurar o alcance dessas transformações.
À noite, já cansado, depois que grande parte dos móveis estava em seu lugar, deitei-me; entretanto, não consegui adormecer. A saudade do meu antigo lar calou fundo no meu coração, e a tristeza tomou conta de mim. Por incrível que pareça, e mesmo que soe utópico, naquele momento, com 15 anos, deixei para trás o menino, e o adolescente começou a se formar.
E… como era engraçada aquela cidade-satélite, com suas casas e ruas iguais, sem iluminação pública e uma terra vermelha que sujava inclementemente as roupas e a pele. O vento levava a poeira para todos os cantos e, no período chuvoso, a lama se tornava abundante.
Logo, nasceram novas amizades que tornaram aqueles anos especiais. Amizades regadas ao sabor das brincadeiras de queimada, futebol, salada mista, entre outras, e, principalmente, aos sons — sem disc-jóqueis — dos sábados e domingos, nas casas de uns e outros, onde, invariavelmente, aconteciam as primeiras paqueras.
Foi um período em que se confiava nas pessoas. Ou me digam: se não é confiar quando a porta da sua casa, que não possuía muros, estava sempre aberta, e não era raro um vizinho adentrá-la sem pedir permissão, soltando apenas um “cheguei”. Se não é confiar quando você recebe, em seu lar, um bando de jovens que se movimenta por todos os cômodos sem tocar em nada, apenas pelo prazer de dançar ao som de Elton John e das nmúsicas românticas das novelas das oito.
As novas gerações jamais poderão mensurar o que perderam, pois perderam a época da inocência. Nós também perdemos. Perdemos grandes amigos — alguns pela morte, outros pelos compromissos da vida que os afastaram. Porém, nada pode impedir a saudade que restou.
………………………
Análise do Texto
Este texto reflete um momento significativo na vida de alguém, quando a mudança de casa e de cidade representa não apenas uma mudança física, mas também uma transformação emocional e pessoal. O Gil DePaula compartilha sua experiência de deixar um lar que, embora simples, era cheio de lembranças e afetos, para viver em um lugar novo, com novos desafios e oportunidades. A saudade do antigo lar e a sensação de perda de parte da infância são elementos centrais, mostrando como a mudança não só afetou o espaço físico, mas também a construção de sua identidade. O contraste entre o barraco de madeira e a casa de alvenaria simboliza um avanço material, mas, ao mesmo tempo, traz uma nostalgia da simplicidade e da vida mais íntima que ele deixava para trás.
A descrição do Guará 2 revela uma cidade-satélite com suas peculiaridades: casas e ruas iguais, poeira e lama, e a falta de iluminação pública. No entanto, também revela a beleza da convivência simples e descomplicada, com amizades formadas através de brincadeiras e festas, em um ambiente de confiança e abertura.
O relato faz uma crítica sutil à perda da inocência das gerações atuais, que, ao viverem em um mundo mais conectado, talvez não experimentem o mesmo tipo de liberdade e confiança que o autor descreve. Essa “era de inocência” é algo que as novas gerações não podem mais vivenciar, pois as relações e os espaços agora são diferentes.
Por fim, o texto é uma homenagem àqueles momentos e pessoas que marcaram a infância e a adolescência, com um toque de melancolia pela perda de amigos e pela transformação inevitável que o tempo impõe. A saudade que ficou é uma constante, mostrando como o passado continua a viver na memória e no coração.