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Do impeachment à picada, somos um Brasil açucarado

Começaram a cair as máscaras na República do Leite Condensado. Agora a CoronaVac é a vacina do governo federal, do presidente Jair Bolsonaro, do ministro Pazuello e de todos que a negaram até que João Dória mostrasse a São Paulo, ao país e ao mundo que era mentirosa a afirmação da ineficácia do medicamento. Na terça-feira, 26, o inquilino do Planalto tentou mais uma vez faturar com uma “obra” que nunca foi sua. Ao contrário do que propagou por cerca de um ano, defendeu, durante reunião com investidores, o antídoto contra a Covid-19, afirmando que ele (o medicamento) “dará mais conforto à população” e ajudará no “funcionamento da economia”.

Paradoxalmente, no mesmo dia o presidente e seu rebanho receberam a informação de que o Tribunal de Contas da União avaliara como ato ilegal a utilização de recursos do Sistema Único de Saúde na compra de cloroquina, remedinho que o presidente e seu rebanho receitavam como santificado contra o vírus. Isso depois de cientistas e infectologistas de todo planeta atestarem que, especificamente para a cura do novo coronavírus, cloroquina e água de poço são a mesma coisa. Ficou feio para o governo, especialmente para o ministro da Saúde, obrigado a manter na página do Ministério um texto sobre as maravilhas da beberagem.

Como estarão reagindo hoje os negacionistas que, desde o início das negociações entre os governos paulista e chinês, escancararam os bicos contra a intromissão comunista na saúde do Brasil? Será que os patriotas bajuladores vão mudar de lado e experimentar um remédio que nada tem a ver com a cloroquina? Certamente que sim. A turba é fiel, seguidora, faz quase tudo que seu mestre mandar, mas não é besta. A loucura desceu morro abaixo depois que os números de infecção e de mortes cresceram assustadoramente tanto na Globo Lixo quanto na Record do bispo amado e no SBT do Baú da Felicidade.

Antes de seguirmos adiante, lembro que “não é a Globo que mente para você. É você que procura a Globo para ouvir mentiras. TV não liga sozinha”. A frase não é minha, mas é como se fosse. Depois de algumas pesquisas superficiais no noticiário nacional, dei-me conta de que também deve ter ajudado nessa mudança de rumo a proibição de divulgação do cartão de vacinação presidencial. Se não tinha intenção de tomar a vacina, por que esconder? Claro que era balela. Quem sabe se o fura fila não passou pelo Planalto? Seja lá o que tenha ocorrido, o povo chamado de gado captou a mensagem e saiu em busca dos cartões escondidos no fundo da mala.

A história hoje é outra. Finalmente a CoronaVac é nossa, é dos brasileiros. Graças a Deus, todos teremos cara de jacaré. Pena que, com ou sem logística, com ou sem ideologia, preocupados ou não com o comunismo, perderam tempo com esse jogo de esconde esconde. Não fosse a extrema necessidade de mostrar o que nunca foi, o governo já estaria na dianteira latino-americana no quesito imunização contra a Covid-19. Infelizmente, não decolamos. Pelo contrário. Voltamos ao patamar de meados de 2020, quando os dados eram normalmente superiores a mil mortes a cada 24 horas. Lamentavelmente estamos bem próximos de 220 mil mortes.

Negociaram insumos e, a contragosto do governo federal, as vacinas começaram a chegar após a inclusão do Instituto Butantan na linha de frente da compra do medicamento chinês. Aos 45 minutos do segundo tempo, o medicamento chegou, mas ainda não conseguimos deslanchar com a imunização. Culpa dos fura filas, da logística complicada ou da insistência dos negacionistas em ignorar as picadas chinesa ou indiana. Não importa. O mais relevante é concluirmos que tanto uma vacina quanto outra são desconhecidas, mas certamente são indolores, na medida em que são salvadoras.

Na verdade, são milagrosas, levando em consideração que estamos exaustos desse maldito vírus, mas ele continua do nosso lado, aguardando somente uma falha, uma aglomeração, uma nova negativa ou quem sabe, a deliberada (?) contaminação. Nesse caso, não houvesse o mea culpa oficial sobrariam as lamentações, pois não haveria picada, reza ou passeata a favor do negacionista alfa que devolvesse a vida. Falando em China, Índia, Rússia, Reino Unido, vírus e vacina, tenho de fazer um parêntese no texto para explicar a razão de a minha Covid-19 ser feminina.

Desgraçadamente o termo faz parte do cotidiano brasileiro pelo menos desde fevereiro do 2020. Antes de qualquer posicionamento, é preciso buscar a origem do vocábulo. Conforme dados da Fiocruz, o nome é uma sigla para a expressão inglesa CoronaVirus Disease (Doença do coronavírus). Portanto, como se refere à doença, a palavra é um substantivo feminino. O número 19 indica o ano em que a enfermidade foi identificada pela primeira vez na cidade chinesa de Wuhan, considerada por meses como o epicentro da moléstia. De Wuhan para os 26 estados brasileiros e o Distrito Federal, o efeito foi devastador.

Mapa atualizado hoje cedo, com detalhes sobre as mortes por milhão de pessoas, revelou o total de 218.878 óbitos, com registros médios de quase 1,1 mil mortes a cada 24 horas. No Rio de Janeiro, estado com a 23ª. maior taxa do planeta, foram computadas 983 por milhão. Em São Paulo, são 1.715.253 casos, para 51.838 óbitos. Desdenharam do vírus, da vacina, da China e da ciência. Apostaram em medicamentos sem qualquer eficácia contra a moléstia e tentaram buscar na Índia um antídoto que não haviam comprado, como se tivessem ido às compras no Mercadão de Madureira. A dúvida é como se comportarão Bolsonaro, Pazuello, Ernesto Araújo e os filhos numerais.

Juntos, eles travaram uma disputa feroz com quem apostou na ciência, inclusive com ameaças de confisco dos medicamentos que tentaram desacreditar. A vida pune. Criada na China, a vacina que já foi comunista e pertenceu a Dória, agora é do governo brasileiro. Que bom que, no discurso presidencial para o rebanho, a picada no país de maricas não seja obrigatória. Eles estão salvos e, se tudo der certo, ainda distantes da prestação de contas. Disposto a encarar o vírus de frente, já disponho de senha para a fila. Viva a ciência, a vacina e a vida. Deus realmente é brasileiro e, desde a redemocratização, nos proporcionou habitar uma republiqueta de estilos bem variados. Já fomos do amargo confisco, do saboroso pão de queijo, do salvador real, da rascante 51, do inesquecível impeachment e atualmente do açucarado leite condensado.

*Wenceslau Araújo é jornalista

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