Segundo a Bloomberg, se o atual ritmo de vacinação, lento e desigual, permanecer, o mundo demorará cerca de sete anos para obter imunidade coletiva contra o coronavírus. Nesse ínterim, surgiriam, é claro, novas variantes resistentes às atuais vacinas.
Imunidade que tarda não é imunidade. Obviamente, isso não é aceitável. O conhecimento científico para controlar a pandemia já existe. Há cerca de 10 vacinas, algumas já disponíveis e outras em fase avançada de testes, bastante eficientes para conferir imunidade.
Além disso, estão sendo desenvolvidos também medicamentos para mitigar os efeitos do vírus nos doentes. Qual é o problema, então? O problema essencial está na apropriação desse conhecimento por grandes companhias farmacêuticas mundiais.
Essas grandes companhias oligopolizam a produção de vacinas e, ante a alta demanda, praticam preços abusivos que inviabilizam a massificação real de um produto que poderia estar salvando a vida milhares de pessoas a cada dia.
Na defesa dessa situação inaceitável, estão os dogmas neoliberais. Dizem, em primeiro lugar, que sem o investimento privado dessas grandes companhias, as vacinas não existiriam. Mentira.
Todas essas vacinas foram desenvolvidas basicamente com fundos públicos, através de subsídios ou grandes compras antecipadas feitas por governos de países mais abonados.
Tais companhias se apropriaram desses recursos públicos e, agora, praticam o preço que querem.
Elas chegam até mesmo a desrespeitar contratos, como a Astra Zeneca fez com a União Europeia, ao encontrar compradores dispostos a pagar preço mais elevado.
Na realidade, o desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico é feito essencialmente com recursos públicos, que são injetados majoritariamente na chamada pesquisa básica.
Mesmo em países muito liberais economicamente, como os EUA, a maior parte das pesquisas, inclusive das aplicadas, é financiada por recursos públicos, através do Departamento de Defesa e da Nasa, entre outras instituições.
No entanto, mediante patentes, empresas privadas se apropriam desse conhecimento e cobram caro para levá-lo à população que o financiou. Essa apropriação é inaceitável, especialmente numa emergência mundial.
Por isso, a Índia e a África do Sul propuseram, na OMC, a suspensão dos direitos de propriedade intelectual sobre vacinas, no âmbito do TRIPS, pelo período em que durar a atual pandemia, reivindicação que não foi apoiada pelo Brasil.
Na realidade, o ideal é que produtos médicos essenciais à saúde pública não fossem passíveis de patenteamento, como previam várias leis nacionais de propriedade intelectual prévias ao TRIPS, que foi um acordo proposto (e imposto) pelos EUA e pela UE, no contexto da OMC, para beneficiar suas grandes companhias farmacêuticas.
A antiga lei de patentes da Índia, por exemplo, proibia o patenteamento de medicamentos e vacinas. Foi essa lei, aliás, que permitiu o desenvolvimento de uma poderosa indústria de produção de medicamentos naquele país.
Antes do predomínio do paradigma neoliberal e do TRIPS, algumas epidemias foram enfrentadas exitosamente, com ausência de patentes.
Foi o caso da poliomielite. O inventor da primeira vacina, Dr, Jonas Salk, fez questão de tornar seu invento público, de forma a baratear o seu custo de produção e permitir que todos os países pudessem produzi-lo.
O fato é que, se não houver quebra de patentes das vacinas e sua consequente massificação e barateamento, o mundo não conseguirá enfrentar a pandemia. Mas o neoliberalismo se choca contra o interesse público não apenas na questão das vacinas e dos medicamentos.
No Brasil, por exemplo, as políticas neoliberais de austeridade tendem a impedir políticas sociais destinadas a aliviar o sofrimento dos mais pobres e possibilitar que eles possam praticar o isolamento social.
Prefere-se atender os interesses do “mercado” e dos rentistas, em detrimento das vidas dos que são obrigados a trabalhar sem quaisquer proteções. Para aprovar um auxílio emergencial raquítico, impõem a chantagem de se retirar dinheiro da saúde e da educação. Impõem, desse modo, a “escolha de Sofia” de optar por morrer de fome ou pelo vírus.
Essa opção preferencial pelos ricos explica também por que tanto o negacionista e inepto governo federal quanto muitos governos estaduais e municipais evitam tomar medidas para impor o isolamento social, única maneira de controlar a pandemia, enquanto a vacina não é massificada.
Rendem-se aos interesses de indústria e comércio, em detrimento da vida da população. Muitas vezes, só decretam lockdown, quando o caos sanitário já está instalado. Por isso, o Brasil é o país pior avaliado, no combate à pandemia.
Segundo a OMS, o número de casos semanais de Covid-19 a nível mundial caiu 11%, na última semana de avaliação, marcando a sexta semana consecutiva de quedas, enquanto as mortes caíram 20%. No Brasil, contudo, o descalabro só aumenta. Somos o patinho feio da pandemia.
É interessante notar que, nos países nos quais o interesse público e a vida da população têm prioridade, em relação aos interesses privados, a pandemia é bem controlada.
É caso, por exemplo, da China, do Vietnã, de Cuba, da Nova Zelândia etc. E são também, em geral, países que sofrem menos danos econômicos com a pandemia. A China graças, em boa parte, ao controle efetivo da pandemia, cresceu 2 %, no ano passado.
Uma façanha, quando se leva em consideração que os EUA tiveram queda de 3,6% do PIB e que a UE apresentou redução de 7,4%. Para este ano, prevê-se que a China crescerá 7,9%.
Assim sendo, a grande doença mundial de hoje é o neoliberalismo e sua irracionalidade intrínseca, fruto da alienação do interesse público, popular e estratégico em suas políticas, bem como a desigualdade que inexoravelmente produz.
A pandemia apenas desnudou e aprofundou a incompatibilidade última desse modelo com a vida da maioria da população. Portanto, a vida precisa ser defendida, ao mesmo tempo, contra o coronavírus e o neoliberalismo.
Para o primeiro, já temos o conhecimento científico necessário. Para o segundo, bastam decisões políticas corretas. Tudo está ao nosso alcance.