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Ela

Do Sertão paraibano para Sampa, altiva, até o Alzheimer consumir tudo

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Santa ela nunca foi. Inocente sim, quando pequenininha. Mas nasceu num 28 de dezembro, dia dos santos inocentes, então, em certa medida, era as duas coisas. Seu nome era Elaine, nascida em Souza, no serão da Paraíba, uma das flores da Abril Cultural, reduto da intelligentsia e da malemolentsia paulistanas. E todos a chamavam de Ela.

Rafael, o Rafa, conheceu Ela na segunda metade dos anos 70, nos corredores da Cultural – e nos muitos bares das redondezas. Viveram uma paixão tórrida, que durou poucos meses e depois encruou. Mas ficaram amigos. Pelos séculos dos séculos, amém.

Só que o tempo é uma pantera impiedosa, e o Alzheimer, uma hiena faminta que devora restos de memórias e de sonhos. Foi o que aconteceu aos dois.

Rafa tornou-se um velho aposentado rabugento, ex-editor, ex-redator, ex-preparador de textos mas ainda revisor e tradutor em frilas cada vez mais escassos e mal pagos. E Ela começou a esquecer. Em um de seus aniversários, quando ainda conversava, contou que a filha tinha visitado aquele país, aquele… e perguntou a Rafa:

– Como chama aquele país em que as pessoas vivem cantando? – e abriu os braços operisticamente.

– Itália? – Rafa chutou.

– Isso!

A coisa se repetiu várias vezes no almoço, a ponto de Rafa brincar que estava camboneando Ela.

Ele percebeu a gravidade do problema quando uma tarde, ao visitá-la, saíram para passear. De repente, Ela perguntou:

– Na Cultural eu não tinha medo de nada, né?

– Ela, você era uma força da natureza. E ainda é.

– Homi (um de seus bordões, era exímia criadora de), sô mais não. Agora tenho medo de tudo.

Com o agravamento do Alzheimer, os contatos se reduziram a almoços de aniversário, que a filha de Ela organizava, no dia dos santinhos sem noção. Os muitos amigos de Ela faziam questão de visitá-la e aprenderam as regras do jogo: não esperar conversas divertidas, antes a marca registrada de Ela, só transmitir carinho. E usufruir sua presença, enquanto desse.

Foi no último 28 de dezembro que Ela levou Rafa ao cinema.

O aniversário correu como de costume. Ótima comida, reencontro de amigos que há muito não se viam, muito amor manifestado para Ela. Que estava imóvel, o rosto impassível. Havia uma nova regra do jogo: falar olhando para ela, em linha reta, como se estivessem nos lados opostos de um telescópio. Do contrário, nem percebia o interlocutor.

Rafa não se preocupou muito com isso, sabia que conversar não levaria a muita coisa. Chegou junto a ela, deu-lhe um beijo na testa, falou, “E aí cumadi”?, e acariciou-lhe o braço. Uns 15 minutos depois afastou-se, dando lugar a outros que também queriam acarinhá-la.

E aí percebeu que o telescópio de Ela estava cravado nele. Era como se estivesse querendo dizer alguma coisa só pra ele. Achou que era impressão, deu mentalmente de ombros, e desviou-se da mira telescópica.

Lá pelas tantas, quando Rafa conversava com alguns amigos na varanda, Ela aproximou-se do grupo. Ou melhor, aproximou-se dele, o telescópio fixo em seus olhos. Rafa sustentou o olhar, e notou algumas coisinhas.

Primeira, o sorriso monalisesco que mal movia os músculos do rosto de Ela estava mais aberto, mais rasgado. Segunda, ela baixava e subia as sobrancelhas, sempre olhando fixo para ele.

“Ela está mesmo querendo me transmitir alguma coisa”, pensou.

Pouco depois, ela tomou a iniciativa de dizer:

– O senhor é um cara muito legal… – e continuou com o jogo de sobrancelhas.

Era legal ser chamado de cara legal, doía pra dedéu ser chamado de senhor. Mas Rafa entrou no jogo.

– Obrigado, a senhora também é muito legal – e sorriu. Logo em seguida percebeu um pedido insistente, baixinho, transmitido sem palavras:

“Deixa eu entrar… deixa eu entrar!”

“Pode entrar, cumadi”, transmitiu ele em resposta, depois do susto.

A comunicação mental veio nítida.

“Nada de perguntas se eu parar para pensar numa resposta esqueço tudo vou mostrar ao senhor o que estou vendo vejo sempre”.

E surgiu a imagem de uma redação da Abril Cultural, com figuras minúsculas, como se a cena se passasse na telona ou na telinha. Estavam produzindo textos, conversando, flertando… Rafa conhecia todos e todas, claro que ele e Ela estavam presentes.

E aí caiu a ficha: não era uma memória, os dois nunca haviam trabalhado na mesma redação. Era uma espécie de presente dos deuses, para tornar mais amena uma vida sem lembranças.

Logo depois a cena mudou, e vários dos personagens do filme anterior apareceram num barzinho, em uma mesa cheia de garrafas de cerveja, todos rindo, alguns se pegando. Havia até abstêmios, que fugiam do álcool como o diabo foge da cruz, mas todos eram amigos de Ela.

Contendo a ansiedade, Rafa esperou o próximo filme. Nesse momento, porém, uma vizinha sem noção virou o rosto de Ela em sua direção, perguntou “Lembra de mim?” e ficou à espera da resposta.

As imagens sumiram todas. Ela talvez tenha notado, talvez não, e se importado ou não. Rafa, porém, notou, se importou, e ficou triste.

Enquanto voltava para casa, prometeu a si mesmo:

“No próximo dia dos santos abestados, se eu e Ela estivermos vivos e a filha me convidar para o almoço de aniversário, vou com uma roupícia mais caprichada. Afinal, é preciso estar apresentável para levar uma senhora muito legal ao cinema!”

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