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Dolores, pernambucana, se livra da sina de ser dada

A solidão sempre se fez presente na minha vida, mesmo quando estive rodeada de pessoas. De vez em quando, grito para dentro de mim, talvez para manter a sanidade diante de tanto tresvario.

Desde menina percebi como a sociedade funciona e, então, decidi preservar meus anseios, desejos e instintos. Não importa o nome que você queira usar, mesmo porque levei muito tempo para entender que nasci assim.

Não foi culpa dos meus pais, maldição, pecado, falta de corretivo ou educação. Também não é coisa dos novos tempos, haja vista tantos tipos semelhantes a mim, que a hipocrisia sempre procurou empurrar para debaixo do tapete.

Meu nome é Maria Dolores Gomes Pereira, nascida e criada na pequena Itacuruba, Pernambuco. Aos 12 anos, fui prometida por meu pai a um viúvo de seus 50 anos. Justamente eu, que nunca me interessei pelos garotos.

Minha mãe não disse palavra sobre o assunto. Ela, que também havia passado pela mesma situação quase duas décadas antes, agora era testemunha do destino da única filha, que veio logo após uma carreira de varões.

Damião. Era esse o nome do sujeito que iria me arrancar dos meus sonhos. A falecida tivera a derradeira gravidez complicada, cujo único filho homem não chegou a respirar neste mundo desalmado.

O viúvo, com cinco filhas ao pé, necessitava de mulher jovem para lhe dar ao menos um herdeiro masculino. Curiosa que sempre fui, aprumei os ouvidos para ouvir o trato de meu pai e Damião.

— Gumercindo, você sabe que necessito de esposa que me dê meninos.

— Pode ficar tranquilo, seu Damião, que Dolores é forte e saudável.

— Sinto que ela é ainda muito jovem.

— É verdade, mas logo as ancas alargam que nem as da mãe. Vai ser boa parideira.

— Confio em você, Gumercindo.

— Pois pode confiar, seu Damião. Minha filha vai encher o seu quintal de meninos graúdos.

Chorei a noite inteira e todas as que se seguiram. Não queria me casar com aquele homem. Aliás, não queria me casar com ninguém. Eu não passava de uma menina e estava prestes a ser forçada a viver uma vida de parideira.

Não me tornei esposa do Damião. Não me tornei esposa de homem nenhum. Fugi de casa sete dias após a conversa que meu pai teve com aquele tipo.

Nunca mais vi minha família. Caí no mundo antes que fosse engolida pelos costumes. Nunca foi fácil, mas faria de novo.

Hoje faz 30 anos após a minha fuga. Olho para trás e vejo que tomei a única decisão possível para me livrar da sina das mulheres da minha família. É verdade que minha trajetória foi espinhosa, mas consegui me desvencilhar de quase todos os homens que quiseram abusar daquela garotinha de outrora.

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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