Estudo elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com a ONU Mulheres, alerta para a vulnerabilidade de trabalhadores domésticos durante a pandemia de covid-19. Referenciando números do IBGE, os autores destacam que cerca de 70% da categoria de um total de 5,7 milhões, não possuem carteira assinada.
Em outras palavras, significa dizer que trabalham na informalidade e sem a cobertura de direitos importantes, como o acesso a 13º salário, seguro-desemprego, FGTS e, ainda, a benefícios previdenciários.
Sem o registro em carteira, a proteção da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) fica prejudicada. O dispositivo legal preconiza, por exemplo, que a jornada de trabalho tenha um limite de oito horas diárias, no máximo de 44 semanais, entre outros aspectos.
Além disso, a categoria está sujeita a violências várias, como racismo, assédio moral e sexual, desvalorização de suas atividades pela sociedade, estigmatização e baixos salários, que podem se tornar ainda mais pronunciadas com a crise sanitária. Outras dificuldades abordadas no estudo são a sobrecarga de trabalho, que é dupla, porque as trabalhadoras têm aumentados os afazeres de suas próprias casas, e a tensão.
Em face dessas questões, os pesquisadores resumem a advertência observando que a falta de fiscalização e a precarização do trabalho são os principais fatores que contribuem para a suscetibilidade da categoria, na atualidade. Eles ponderam que o trabalho doméstico somente pode existir devido a uma condição, a da desigualdade social, uma vez que a remuneração dessas trabalhadoras é paga por pessoas que dispõem de uma renda maior. “A vulnerabilidade desta categoria tem, na falta de proteção social, uma de suas marcas mais fortes e permanentes”, afirmam.
“São mulheres, em geral, negras e pobres, com baixa escolaridade, que assumem o trabalho doméstico de famílias mais abastadas, possibilitando que os homens sigam se desresponsabilizando por este trabalho e que outras mulheres, em geral brancas e com maiores recursos, possam ‘resolver’ sua sobrecarga de trabalho doméstico, tanto para a entrada no mercado de trabalho quanto para outros fins, entre os quais apaziguar eventuais tensões e conflitos causados por um estremecimento da divisão sexual tradicional do trabalho. A terceirização do trabalho doméstico cria, portanto, uma oposição de classe e raça entre as próprias mulheres, ao mesmo tempo que se configura em uma solução privada para um problema público, sendo, portanto, acessível apenas àquelas famílias com mais renda”, acrescentam.
Empregado x empregador
A pesquisa indica que a relação que as trabalhadoras domésticas estabelecem com os patrões é um dos x da questão para que se possa compreender o que está em jogo e agora as atinge mais severamente. Segundo os pesquisadores, é necessário se levar em conta que a categoria profissional atua em lares que não estão sob seu domínio, o que faz com que não tenham nenhum controle sobre a qualidade do distanciamento social que está sendo feito. Conforme cita a advogada do Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo (Sindoméstica), Nathalie Rosário, a maioria das domésticas anda de transporte público, o que eleva o risco de contraírem covid-19 e também transmitirem aos empregadores.
Embora o Ministério Público do Trabalho (MPT) e entidades representativas da classe, como a Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), tenham feito um apelo para que os empregadores liberassem as domésticas de cumprir expediente na pandemia, sem cortar salários, isso não ocorreu na prática, diz Nathalie. “Pelo que a gente tem percebido, grande parte dos empregadores, quando tiveram a renda afetada, afastou também as domésticas [de suas atividades], utilizando o acordo de suspensão [de contrato, autorizado mediante a edição da Medida Provisória (MP) 936]. Então, 70% dos acordos que a gente recebeu foram de suspensão e 30% foram de redução de jornada e salário. E, claro, a gente está falando de dados sobre os quais se têm registro, porque grande parte das domésticas não têm carteira assinada e não tem como o governo repassar [as informações]”, comenta, sublinhando que a maioria delas também é fonte central de renda da família.
Um dos pontos examinados pelos especialistas do Ipea é a justaposição entre as esferas afetiva e profissional, dada a complexidade das relações entre empregador e funcionária. “É importante reconhecer que o trabalho de cuidados envolve uma carga emocional e afetiva muito forte. Assim, quando desempenhado como trabalho remunerado, os afetos podem ser usados como amarras para a dignidade das trabalhadoras domésticas ou ainda como moeda de troca na negociação de direitos. São situações nas quais a intimidade, o cuidado, o afeto e as emoções se convertem em abuso, exploração, manipulação dos afetos e doação sem limites”, escrevem.
“‘Ela é como se fosse da família’, a frase usualmente propagada nas classes média e alta da sociedade brasileira sobre a posição das trabalhadoras domésticas pretende mascarar a ideia de ‘trabalho’ em relação aos serviços de cuidados prestados por essas profissionais e pode esconder horas extras de trabalho não contabilizadas, sobrecarga de trabalhos que extrapolam o inicialmente acordado e situações de abusos morais e sexuais”, emendam.
Perguntada sobre como as domésticas têm lidado com as barganhas dos empregadores quanto a seus direitos, durante a pandemia, Nathalie confirma que isso continua ocorrendo. Para ela, a exploração do trabalho desse segmento é uma herança de uma lógica escravagista.
“É muito preocupante até para as domésticas entenderem isso, saber separar e compreender que precisam ser tratadas como profissionais, que o acesso [afetivo] pode ocorrer, por conta da relação, mas que não é bom que se aprofunde tanto. A empregadora pode dizer ‘Ah, não vou te dar o FGTS, mas eu te dei aquela mesa. Então, está tudo certo. Eu não fiz o registro [em carteira] porque nós somos amigas. Você vai botar essa faca nas minhas costas?’. As domésticas não são da família, são profissionais que lutaram para ter seus direitos reconhecidos. É uma profissão muito antiga no Brasil, que só foi regulamentada em 2015. Quantas ficaram para trás, desassistidas, sem direitos? A gente tem que quebrar essa raiz que vem da escravidão, da servidão, e passar a tratar essas trabalhadoras como profissionais”, declara a advogada.