Inteligência Artificial
‘Doutor Máquina’ vai tentar prever a nossa morte
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emEmbora a única certeza da vida seja a morte, ninguém sabe precisar quando irá cruzar a fronteira final da existência. No que depender de sistemas de inteligência artificial (IA), essas incertezas serão menores. Em diversos países, universidades e empresas já estão treinando algoritmos médicos para realizarem previsões sobre óbitos, a partir das informações de saúde e hábitos de qualquer pessoa. A ideia passa longe de uma curiosidade mórbida: munidos dessas informações, médicos poderão tomar decisões e ações para melhorar a condição dos pacientes e prolongar seu tempo de vida. Agora, o primeiro estudo do tipo no Brasil está prestes a ser publicado.
Realizado pelo Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde (Labdaps), parte da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), o trabalho teve como cerne o desenvolvimento de um algoritmo, cuja tarefa era prever óbitos, dentro de um período de cinco anos, para um grupo de pessoas da terceira idade. Os resultados, que serão publicados em breve na revista acadêmica Cadernos de Saúde Pública e foram antecipados com exclusividade ao Estado, mostram uma precisão de 70% nas previsões feitas pela máquina.
“Uma ferramenta dessas pode ser usada por médicos e hospitais para iniciar tratamentos preventivos, determinar prioridades de internações e realizar intervenções clínicas”, diz Alexandre Chiavegatto Filho, diretor do Labdaps e responsável pelo estudo. “Ela oferece informação que às vezes os humanos não tem para a tomada de decisões mais assertivas.”
Para fazer as previsões, a inteligência artificial do Labdaps teve de ser alimentada com dados. O sistema analisou informações do estudo Saúde, Bem Estar e Envelhecimento (Sabe), organizado pela Organização Pan-Americana da Saúde: o levantamento acompanha, desde o ano 2000, 2.808 mil idosos residentes na cidade de São Paulo. A cada cinco anos, eles geram uma batelada de informações, por meio de questionários, exames médicos, avaliações funcionais e antropométricas.
Na primeira fase, o algoritmo analisou informações de 70% dos idosos do grupo de estudo, verificando 37 variáveis presentes apenas no questionário. Algumas delas eram pouco óbvias — como, por exemplo, a dificuldade do idoso para ir ao banheiro. A ideia não era necessariamente encontrar relações diretas entre as perguntas, mas sim analisar um cenário mais amplo que possa levar à morte dos pacientes. A partir desses dados, o sistema começou a tirar suas próprias conclusões sobre o que leva alguém a óbito, podendo detectar padrões e relações pouco claras para um ser humano.
Depois disso, para verificar sua eficácia, a máquina foi confrontada com os dados iniciais dos outros 30% para fazer previsões. É como se uma criança na escola tivesse estudado sete exercícios, e, a partir disso, fizesse uma prova com outros três. O resultado foi que, das 118 mortes que tinham acontecido dentro dos idosos do segundo grupo, o sistema foi capaz de prever 83 delas.
Para especialistas, um algoritmo com 70% de precisão é um nível considerando bastante satisfatório para testes iniciais. O próximo passo do estudo, segundo Chiavegatto, é treinar o algoritmo com um banco de dados maior, para que ele se torne ainda mais preciso. Como o Brasil ainda não tem um banco de informações do tipo e a abrangência do estudo Sabe é baixa, o sistema agora será treinado com dados de um banco de informações de 500 mil idosos ingleses.
Fora do Brasil, estudos do tipo estão sendo conduzidos com mais dados e resultados impressionantes: um trabalho publicado pelo Google e pela Universidade Stanford teve precisão de 90% nas previsões de óbitos. Enquanto isso, a Academia Chinesa de Ciências e o Hospital Geral de Pequim começaram a usar IA para detecção de morte cerebral.
É também por ter um banco de dados ainda reduzido que a IA não consegue dizer ainda qual é a provável causa de morte. “Quando tivermos bancos mais completos, composto por prontuários eletrônicos disponibilizados no Serviço Único de Saúde (SUS), conseguiremos ser muito mais específicos”, explica Chiavegatto. “Será possível identificar o que poderá causar a morte e reverter isso.” De acordo com o pesquisador, hoje já há hospitais e planos de saúde interessados no funcionamento de algoritmos preditivos.
Com o tempo, deverá ser difícil ignorar o poder dessas ferramentas na área da saúde. Na semana passada, por exemplo, a Santa Casa de Porto Alegre começou a utilizar um sistema de IA que analisa, a cada 3,8 segundos, as chances de infecção generalizada nos 70 leitos de sua Unidade de Terapia Intensiva (UTI) — o que permite atendimento mais veloz para pacientes vulneráveis e a prevenção de uma das principais causas de morte do País, segundo dados do SUS.
Antes que o “Doutor Máquina” se torne padrão na área da saúde, porém, há questões éticas que precisam ser respondidas. “Minha preocupação é que operadoras de saúde e hospitais passem a usar esse tipo de algoritmo para determinar quem recebe tratamento ou tem acesso aos planos”, diz Walter Carnielli, membro do instituto AI² e diretor do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O governo e a sociedade têm que estar atentos”.
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) diz que vê muitos problemas no uso de algoritmos, ainda mais considerada a finalidade de “previsão da morte”. Para a instituição, o uso de IA deve sujeitar-se a regulamentação prévia por parte da Autoridade de Proteção de Dados Pessoais, e que nenhum uso comercial seja colocado em prática antes disso. Procurada pelo Estado, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), vai na mesma linha: em nota, a agência disse que nenhum consumidor pode ser impedido de participar de planos privados de assistência à saúde.
Na nota, a agência também destacou um artigo presente em projeto de lei recém-aprovado pelo Senado, que modifica a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e aguarda sanção do Presidente Jair Bolsonaro: “É vedado às operadoras de planos privados de assistência à saúde o tratamento de dados para a prática de seleção de riscos na contratação de qualquer modalidade, assim como na contratação e exclusão de beneficiários”. Isto é: mesmo que tenham dados, as operadoras não podem negar acesso ou alterar valores do plano de um paciente com base no que um algoritmo diz.
Mas isso não significa que os pacientes terão tratamento garantido. “É possível que, no futuro, um algoritmo de previsão sugira tratamentos que não estão nos planos pagos pelo paciente”, diz Reinaldo Scheibe, presidente da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge). Nesse caso, os planos ainda estariam seguindo a lei, mas o usuário poderá ficar desamparado.
Para o executivo, porém, o principal uso dos algoritmos de previsão será na indicação de tratamentos preventivos para redução de custos — em vez de esperar uma internação por problema cardíaco, os dados poderão ser usados para mudanças de hábitos do paciente, como recomendações de alimentação saudável ou exercícios. Se isso acontecer dessa forma, os pesquisadores do Labdaps ficarão satisfeitos. “Espero que algoritmos sejam usados de forma positiva. Não gostaria que isso fosse usado para barrar tratamentos”, diz Chiavegatto.