Ángel
Dramas ‘cantantes’ não comovem, mas com a miragem no espelho…
Publicado
em“Si arrastré por este mundo/La vergüenza de haber sido/Y el dolor de ya no ser…”
Ángel cantarolava sempre as palavras iniciais de Cuesta abajo. Elas quase retratavam sua situação. O resto do tango, não. Era uma bela e triste canção de amor e traição, de uma vida que vai por água abaixo, cuesta abajo, ansiando pelo tempo perdido, “el tiempo viejo que nunca volverá”.
Ángel sorriu com desprezo. Draminhas humanos não o comoviam. Mas as lancinantes estrofes iniciais, sim.
Pensou, pela enésima vez, na adaptação que fizera para seu caso: “Arrastei por este mundo a honra e o orgulho de haver sido e a vergonha e a dor de já não ser”. Não era tão forte quanto as palavras do tango, escritas em 1934. mas descrevia perfeitamente o que acontecera.
Sem dúvida, sentia-se honrado e orgulhoso por ter feito parte da corte, belo e poderoso – não tanto quanto o Portador da Luz, mas ainda assim imponente. Sabia que talvez fosse melhor não mencionar orgulho, emoção que estava na origem da queda dos Malevos – e nunca um termo tanguero foi tão bem aplicado –, mas, claro, o orgulho estava presente. E a honra. Até que tudo acabou, e foi arremessado para as profundas. E aí vieram a vergonha e a dor incomensuráveis de já não ser.
Tentou, pela enésima vez, dizer seu nome original e, pela enésima vez, viu-se incapaz de pronunciá-lo. Por isso usava Ángel, pálida evocação do tempo glorioso, do tempo velho que nunca voltará. Quanto ao outro nome, tinha desprezo por ele, e mais ainda pelos que o utilizavam para convocá-lo para trabalhos malignos. Mas obedecia, não havia outro jeito, eram as regras do jogo.
Materializou-se no lugar que odiava com todas as fibras de seu ser. Olhou-se no espelho, afastou a imagem de milonguero atraente como quem despe um casaco e viu suas grandes presas e unhas sujas e afiadas. Era a sua aparência depois da Queda.
Abriu um sorriso perverso. Esta noite não havia trabalhos de magia negra encomendados, esta noite sairia pelas ruas de Buenos Aires para dilacerar quem encontrasse. Gostava do sabor do sangue, era um dos poucos prazeres de sua existência miserável, capaz de apagar, momentaneamente, a dor de já não ser, a tristeza pela corte celestial para sempre perdida.