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Fogo na memória

É preciso agir para que o Museu Nacional não se repita aqui

Publicado

Autor/Imagem:
Marc Arnoldi

A tragédia que marcou o fim de domingo no Rio de Janeiro se agravou nesta segunda-feira. O incêndio que destruiu o Museu Nacional deveria ter provocado uma comoção nacional, um questionamento sobre nossa forma de preservar, de valorizar o passado.

Digo nossa porque não me eximo da parcela de responsabilidade que todos nós, brasileiros de nascimento, de adoção ou de coração, temos neste vergonhoso esquecimento, desinteresse que temos para o que aconteceu ontem, semana passada, ano passado e assim vai.

Como imaginar que a humanidade vai progredir, vai evitar erros crassos se não nos lembrarmos de como chegamos a alguns dos maiores absurdos de nossa história comum?

O planeta está em perigo porque o homem o destruiu, não a natureza. Os mais de 60 mil brasileiros que morreram de forma violenta aqui o ano passado não o foram por jacarés ou terremotos, mas sim pela mão de outros homens. Os milhões de seres que sucumbiram nas guerras, nos regimes autoritários de direita e de esquerda, nas doenças, eles fazem parte de nosso passado infelizmente ainda presente.

São os registros do passado que nos mostram os caminhos perigosos, que já deram errado. Com eles debaixo dos olhos, não dá para dizer “não sabíamos”. Uma vez destruídos, a porta fica escancaradamente aberta para populistas, pregadores, mentirosos e outros fanáticos de plantão, muitas vezes como segundas intenções negociáveis em pecúnia, vender seu peixe fedorento de salvador da pátria, de resolve-tudo e de paizinho querido do povo.

A preservação do passado, com seus acertos e erros, não interessa aos poderosos provisórios, que adoram remodelar a história seguindo os preceitos da moda, da hora. Um dos vários pontos em comum dos nazistas e dos comunistas sempre foi a destruição da memória, para modelar uma nova, uma narrativa que de tantas vezes repetida devia virar a realidade. George Orwell descreveu perfeitamente o fenômeno em “1984”, e de Hitler a Stalin, de Kim Jung-il a Erdogan, de Mussolini a Mao Tsé-Tung, não foram poucos que colocaram a prática de debilitar uma civilização pela anulação de sua história.

Digo que a tragédia do Museu do Rio piorou porque as invés de questionar nossa relação com nosso patrimônio e seu uso no nosso dia-a-dia, torcidas dos candidatos à eleição presidencial atual estão sordidamente aproveitando o que deveria ser um momento de reflexão nacional para distribuir culpas aos adversários. De hoje. Porque ainda estavam juntos na eleição geral passada. E podem voltar a estar no mesmo palanque na próxima.

É preocupante que políticos de primeiro plano, intelectuais, cientistas ou jornalistas, estejam rejeitando a culpabilidade dos muros carbonizados no seus adversários, porque todos nós, e obviamente eles também, sabemos que o pecado é da coletividade. E os fatos falam por se. Juscelino foi o último Presidente a botar o pé no MN, é fato. Os alertas de risco de incêndio pela situação deplorável tinha sido feitos por escrito em 2004, é fato. A verba repassada pela UFRJ era só para manutenção e vinha diminuído há anos, é fato. O orçamento 2018 era ridiculamente baixo, é fato.

Mas o conjunto de fatos não aponta em qualquer das direções apresentadas pelos cabos eleitorais de um ou outro. Indicam todas. E mais: a iniciativa privada, várias vezes chamada, não se apresentou. Enfim, e talvez o mais cruel dos fatos: todos esses mencionados estavam se acotovelando nos luxuosos camarotes de autoridades e capitães de indústria na Copa do Mundo de 2014 e nos Jogos Olímpicos de 2016.

No Rio de Janeiro. No Maracanã. Que fica a 1 quilômetro do Museu Nacional. Nessas noites de gala regadas a centenas de milhões de reais dos orçamentos públicos Federal, Estadual e Municipal, ninguém se interessava pelo enorme casarão escuro. Que ficou tristemente iluminado demais domingo à noite. Pela última vez.

Deixemos os canalhas de espírito de urubu atribuir a culpa a quem quiser. Enquanto isso, os verdadeiros indignados precisam cobrar das diferentes autoridades uma vistoria em todos os museus, acervos, arquivos, depósitos de memória do Brasil. Dizem que a Biblioteca Nacional passa pelo mesmo estado de degradação. Como estão os museus de nosso Distrito Federal? Então ajamos agora, para que não aconteça de novo. Porque se esquecemos, a memória nacional terá queimado em vão. Uma segunda vez.

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