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E ‘Se a Rua Falasse’, Hollywood ouviria sua voz?

Foto/Divulgação

Havia a expectativa de que, três anos após a polarização de Moonlight – Sob a Luz do Luar e La La Land – Cantando Estações, Barry Jenkins e Damien Chazelle voltassem a acertar suas contas no Oscar. Nem um nem outro chegaram lá. A despeito de suas qualidades, Se a Rua Beale Falasse e O Primeiro Homem foram preteridos nas indicações para os prêmios da Academia. Mesmo assim, será um escândalo se Regina King, indicada para melhor atriz coadjuvante, não repetir o Globo de Ouro que recebeu pelo papel da mãe no longa de Jenkins. O filme tem mais duas indicações – roteiro adaptado, para o diretor, e trilha, Nicholas Brittell.

Em Se a Rua Beale Falasse, que estreia nesta quinta, 7, Barry Jenkins se atraca com o assim chamado ‘monumento blues’ de James Baldwin e faz o que não deixa de ser um filme raro. Recapitulando – até em nome da correção política, Hollywood tem atribuído, nos últimos anos, grande reconhecimento à produção de artistas e técnicos negros. Este ano, Ryan Coogler faz história cravando a primeira indicação de um blockbuster de super-heróis na categoria de melhor filme, Pantera Negra, e Spike Lee colhe a dupla indicação, para filme e direção, por Infiltrado na Klan.

Se valer, como indicação, a escolha do Sindicato dos Produtores mostra que quem leva é Peter Farrelly pela linda história de amizade birracial de Green Book – O Guia, em que Viggo Mortensen e Mahershala Ali estão geniais, e pelo qual o segundo vai repetir seu Oscar de ator coadjuvante por Moonlight.

Escritor de múltiplos talentos – romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta –, Baldwin não apenas refletiu sobre tensões raciais motivadas pela desigualdade. Também encarou a sexualidade, expressando as dificuldades de homens negros homossexuais e bissexuais no rumo da aceitação de sua condição, a própria e a da sociedade.

Nesse sentido, há um tanto de Baldwin em Green Book, enquanto em Rua Beale, Jenkins, que já abordou o tema, parece tomar outro rumo. E.L. Doctorow e Milos Forman – no começo dos anos 1980, o autor checo radicado nos EUA fez um dos maiores ataques de Hollywood ao racismo com Na Época do Ragtime. No centro de tudo, a história de amor de um casal de negros e a intransigência policial.

São várias histórias cruzadas – e que, inclusive, remetem aos primórdios do cinema –, mas a mais intensa de todas é a do pianista negro que é humilhado e resolve reagir, fazendo justiça por conta própria. É o que também ocorre em Rua Beale, a parte da injustiça, pelo menos. O filme conta o romance de Tish, de 19 anos, e Fonny, de 22. São interpretados por Kiki Layne e Stephan James, que formam o casal mais belo do mundo, independentemente de raça.

O amor seria a coisa mais bela, se Fonny não fosse acusado, por um policial que busca vingança, do estupro de uma mulher porto-riquenha. A partir daí, irrompe a violência, e não apenas da instituição, porque, quando Tish engravida, a mãe de Fonny a acusa de destruir a vida de seu ‘menino’.

Por mais cruel que seja a injustiça, o amor é mais forte e Barry Jenkins conta sua história por meio de travellings lentos e cores saturadas, no embalo de uma musicalidade – o jazz – que teria alguma coisa da tonalidade mística de Terrence Malick, se o diretor não fosse tão impregnado pelo romantismo barroco e delirante do mestre do melodrama, Douglas Sirk. Não ligue para as referências. Elas estão mais no olhar de quem vê do que propriamente na tela e até a prosa de Baldwin cede espaço ao lirismo que, afinal, é a leitura que Jenkins faz do texto. Nesse sentido, e a despeito de todo o seu esplendor, faz sentido que Rua Beale esteja sendo minimizado pela Academia.

Ao optar pelos superpoderes de um herói negro, e pela incrível história verdadeira de um policial afro-americano que conseguiu se infiltrar na ultrarracista Ku Klux Klan, a Academia sinaliza para uma tomada de posição que só na aparência é mais urgente. Existe dor, redenção, luta em Se a Rua Beale Falasse, como havia em Moonlight, embora em outra tonalidade.

Hollywood premiou no ano passado o Corra!, de Jordan Peele, e este ano deixou de fora das indicações principais não só Barry Jenkins, mas também o explosivo Sorry to Bother You, de Boots Riley, com o outro ator de Corra!, Lakeith Stanfield. Com suprema ironia, Riley investe contra o que há de mais perverso no capitalismo. Jenkins não é menos duro na descrição de seus personagens e do mundo em que vivem, mas um autor negro parece não ter direito a essa melancólica – bela e triste – epifania. Com ou sem Oscar, Tish e Fonny farão parte das lembranças inesquecíveis deste ano.

James Baldwin morreu há mais de 30 anos – em 1.º de dezembro de 1987 –, na França. Ele foi um ícone da insurreição por direitos civis, nos anos 1960, mas dentro do próprio movimento negro sempre foi polêmico. Em seus livros e ensaios, Baldwin não denunciava apenas o preconceito racial e social, a penosa questão da pobreza dos afro-americanos na América.

Baldwin também deu voz à sexualidade reprimida de homens negros homossexuais e bissexuais. Consta que foi ele quem fez a cabeça – e ‘politizou’ – da cantora, compositora e ativista americana Nina Simone. Nem por isso deixou de sofrer críticas do radical Malcolm X.

Se a Rua Beale foi seu último livro, publicado em 1974. Baldwin foi acusado de reutilizar temas racistas da década anterior. Na verdade, e por menos que o filme de Barry Jenkins seja fiel à letra do romance – a Rua Beale é referência, quase não dá as caras no filme (nem no livro), embora seja um espaço mítico do blues de Memphis, no Tennessee –, o espírito do autor está presente.

O curioso é que Baldwin se presta à reinvenção dos cineastas. De um livro inacabado, sobre três ativistas negros assassinados – Medgar Evans, Malcolm X e Martin Luther King –, Raoul Peck tirou o documentário Eu Não Sou Seu Negro, que foi indicado para o Oscar há dois anos. E agora Jenkins impregna de suave tristeza esse admirável Rua Beale.

Baldwin virou um nome com seu segundo livro, um clássico da literatura gay – O Quarto de Giovanni. O terceiro, Terra Estranha, é um caudaloso volume que investiga as relações de um baterista com seu entorno. O tempo passa, o mundo retrocede e é precioso (re)ler James Baldwin. As questões que ele aborda seguem atuais.

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