Paz de espírito
Edu, maratonista tipo Forrest Gump, vai de Brasília ao litoral pernambucano

Eduardo Martínez, veterinário por insistência da mãe e maratonista por teimosia própria, é mais conhecido nos arredores do Planalto Central como o “Forrest Gump do Cerrado”. Um apelido que não o incomoda; ele o ostenta com orgulho, como se fosse uma honraria concedida pelo Ministério da Loucura e das Causas Perdidas.
Acordou num dia qualquer, desses em que o céu de Brasília parece um filtro de Instagram esquecido no azul-celeste, e anunciou para a esposa e seu casal de cachorros:
— Vou correr até Itapuama. Praia. Pernambuco. Região paradisíaca.
Ninguém deu muita bola. Irene, a esposa, apenas levantou os olhos do celular e perguntou se ele ia querer seu café gourmet, uma rotina diária de toda manhã, antes de levar adiante a sandice.
Inspirado por seus anos como rei leão autointitulado do cerrado — título adquirido após salvar um filhote de onça-pintada que confundira um Fiat Uno com a mãe — Eduardo sempre acreditou possuir habilidades místicas oriundas da fauna nacional. Emprestou as patas de um guepardo imaginário, inflou os pulmões como uma baleia branca em busca de liberdade, e partiu. Pé ante pé. GPS na cabeça, pão de queijo na mochila.
Brasília ficou para trás como uma miragem institucional. Passou por Passos, na divisa de Goiás com Bahia, onde trocou palavras com um velho tocador de berrante que jurou tê-lo visto nos créditos finais de um filme do Almodóvar. Em solo baiano, cruzou com uma procissão. Confundido com um santo corredor, ganhou um terço e uma marmita de frango com jerimum.
A Polícia Rodoviária Federal parou-o na BR-101 Norte, já próximo a Sergipe.
— Documento?
— Tenho só o da vacina antirrábica.
— Motivo da viagem?
— Paz de espírito. E um mergulho em Itapuama.
Liberaram. Faltava pouco para os tempos atuais surtarem de vez e a normalidade era cada vez mais um delírio coletivo.
Chegou a Itapuama 23 dias depois, com a barba lembrando um ermitão digital e os tênis reduzidos a duas lembranças de tecido. Mergulhou no mar como se voltasse ao útero do mundo e proclamou, entre duas ondas e um suspiro profundo:
— Isto aqui sim é o centro do Brasil.
Ninguém entendeu. Mas um surfista, ouvindo de longe, pensou que talvez, só talvez, aquele homem tivesse encontrado algo mais valioso que petróleo ou reeleição. Achara enfim a paz. Ou ao menos uma desculpa convincente para não voltar a Brasília.
No apartamento na Asa Norte, Irene, mulher de fibra, paciência e histórico de hipertensão, jamais poderia ser chamada de crédula. Se o marido dissesse que o céu era azul, ela olharia pela janela só para ter certeza. Quando ele saiu de casa anunciando a corrida até Itapuama, não fez escândalo. Apenas serviu o café, mandou ele levar um protetor solar fator 50 e voltou para o grupo de WhatsApp das “Mães de Brasília Resistentes e com Labirintite”.
Três dias depois, porém, uma notificação no celular mudou o rumo da história: “Homem corre de Brasília a Pernambuco em nome da paz: ‘Sou um com os animais’”. A matéria vinha acompanhada de uma foto: Eduardo, descabelado, de bermuda, posando ao lado de um cavalo em Petrolina. O cavalo, aliás, parecia mais confuso que orgulhoso.
— Ele vai mesmo até o fim, esse danado — murmurou Irene, entre o assombro e o orgulho que só as esposas de malucos de bom coração conseguem sentir.
No mesmo dia, convocou a filha do casal, Maria Luíza, uma quase aborrecente carinhosamente apelidada Malulinha (coisa de lulista, só sendo), especialista em falar “cringe” para tudo e viciada em frappuccino.
— Mãe, o pai tá viralizando. Tem dancinha já com o áudio dele dizendo “sou um com os animais”.
— Pois agora a gente vai ver isso de perto.
Compraram passagens para Recife, hospedaram-se num Airbnb decorado com conchas e quadros motivacionais (“Sorria, você está na praia”, dizia um deles, torto na parede). De lá, seguiram de Uber até Itapuama, com o motorista explicando que ali era tranquilo, mas só até o primeiro influenciador aparecer com drone.
Na praia, Irene montou acampamento de guerra: canga, cooler, protetor solar e uma cadeira dobrável que gritava “dignidade” mesmo em meio à areia quente. Malulinha fazia vídeos, esperando capturar a chegada do pai para gerar um clipe que chamaria de “A Saga do Leão do Cerrado”.
— Mãe, tu acha que ele vem mesmo? — perguntou a garota, ao terceiro dia de espera.
— Se ele não vier, eu mesma corro de volta para Brasília e enfio essa maratona no lugar que merece…
Mas não foi preciso. No pôr do sol do quinto dia, surgindo na linha do horizonte como uma lenda descalça e suada, lá vinha ele. Eduardo Martínez, olhos marejados, barba de andarilho bíblico e já sem a camisa que, rasgada ao longo da caminhada, foi deixada para trás e substituída por uma de cor azul do mar que o aguardava.
Correu até a água, mergulhou com um grito primal, e saiu caminhando na direção da esposa, exalando sal e aroma de algas.
— Amor… cheguei.
Irene e o olhou de cima a baixo.
— Pois agora você me explica essa aventura. E espero que tenha trazido pão, porque aqui em Itapuama não tem padaria.
E ele riu. Um riso longo, livre, como se fosse o próprio mar falando.
Ela riu também. E, sem saber como, sentaram-se os três — ele, ela, e a filha postando tudo em tempo real — à beira-mar, como se o país fizesse algum sentido ali, naquela marolinha mansa.
Por fim, mais uma surpresa:
– Amorzinho, vamos ficar por aqui?
– Que boa ideia, Du. Até porque, na falta de água, os donos das barracas dão um jeito com o suco de pitanga.
– Como assim?, perguntou a filha, curiosa, sem saber nadica de nada.
– Ah!, fique só filmando, Malulinha. É com Pitú. E não confunda com camarão grande.
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José Seabra é Diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras
