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Imaginação jurídica

Efeito colateral da morfina é envernizar cara de pau

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

Dia desses, após uma noitada regada a vinhos da vinícola Orora e petiscos do Armazém do Portuga, fui pego com a boca na botija. Na verdade, ainda estava nas beirolas. Como não sou acostumado a nenhum dos três citados itens, pensei rápido: O que dizer à patroa? Não sei mentir e fui logo assumindo a culpa pelo ocorrido. Não fi-lo porque qui-lo. Fui levado às últimas consequências por culpa de um médico desalmado e desacostumado com cliente, como eu, livre de qualquer suspeita, de conduta ilibada, com conhecimento jurídico um pouquinho acima da média e, sobretudo, sem cara de pau para dizer a todos que tudo que fiz foi culpa do desastroso efeito do esquecimento.

Não usei do argumento porque ainda não tinha tido contato com os advogados de Brasília e da Zona Sul do Rio de Janeiro, principalmente com os pupilos, discípulos ou aprendizes de feiticeiros, os quais acabaram de criar um novo modismo nos tribunais: é tudo culpa da morfina. Há dias, durante depoimento sobre o 8 de janeiro, a defesa do presidente fujão disse que Jair Messias estava sob efeito de morfina quando fez uma publicação questionando o processo eleitoral nas redes sociais, após os ataques criminosos contra as sedes dos três poderes. Dias antes, uma suposta patricinha véia da emperebada elite carioca agrediu entregadores da Rocinha com uma coleira de cachorro, com a qual ela mesma (a ex-dondoca) deveria ser presa.

E o que fez o advogado da loira de farmácia? Creditou a fúria da falsa loira à morfina. Messias e a maluquete não foram os únicos a buscar na potente droga uma forma de leniência para seus males pra lá de salientes. Confusão mental é o que eles (os advogados) querem nos impor. Pelo menos é o que parece. O último a usar o argumento mandrake foi o delegado Anderson Torres, ex-ministro da Justiça do mito. Para justificar o envio de senhas erradas do celular à Polícia Federal, a defesa do pavãozinho Torres culpou o uso exagerado do fármaco pelo “grau de comprometimento cognitivo” do cliente.

Confesso que, mesmo na idade em que estou, jamais soube que o medicamento, além de dores fortes e crônicas, também curava cagadas malcheirosas e produzidas por cagões ou cagonas sem pedigree. Nem meu cachorro Thor tem esse defeito. Ele só faz sobre o jornal do dia e exige que seja limpo imediatamente após o ato cagonitivo. Não sei – nem quero saber – se o escritório que inventou essa nova marmota é o mesmo, com as devidas ramificações, que incluiu o termo Bis in Iden no disse onário popularesco do juridiquês. Se for, eita criatividade pai d’égua. Nesse caso, minhas ilações são Erga omnes, isto é, contra quem criou, quem mandou criar e contra quem está se beneficiando.

Concessa vênia, nobre causídico, mas acho que a ideia é transformar em cláusula pétrea mais uma aberração de vossa imaginação jurídica. Usando meu direito do contraditório, abro mão até dos exageros dos honorários contratuais in casu, mas, in verbis, temo que o modus operandis vire moda e que os magistrados, principalmente os de tribunais superiores, aproveitem o vacatio legis e passem a absolver réus com sentença condenatória, impondo a sucumbência, sem reconvenção, àqueles que acusaram sobre o falso da morfina como mero recurso protelatório. Torcendo para que o Vade Mecum seja usado sem suspeições de primeiro, segundo e terceiro graus, o que o Brasil espera é que, quando as três peças jurídicas (a do mito, a do ex-ministro e a da falsa loira) finalmente chegarem à vara, os magistrados escolhidos para relatar os processos sejam cognitivamente imparciais e sem decisão ultra petita.

Sinceramente, se pudesse sugeriria como relatores os ministros Nunes Marques e André Mendonça. Seria a oportunidade definitiva para que ambos percebam que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Em outras palavras, agradar sistematicamente ao presidente que os indicou desagrada o país e a sociedade. Deixem o jogo ser jogado. Não escondam a bola. A história cobrará com juros e correção caso queiram entender como normal a tese de que morfina gera confusão mental. Cura dores crônicas, nada mais. Sobre os efeitos colaterais da droga, o mais comum é o paciente começar a achar que o povo acredita de fato em duendes, bruxas e discos voadores. Na sequência, ele enverniza a cara de pau e passa a ter certeza de que, fora ele, o mundo é composto somente por idiotas.

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