As mulheres ganharam as arquibancadas e recuperaram sua presença no gramado, mas o globalizado negócio da Copa do Mundo ainda promove nas ruas e nas áreas destinadas para os torcedores um espaço muito hostil para elas, onde ainda reina o machismo.
A história do futebol reflete a natureza da sociedade em que vivemos e, portanto, corre paralelamente ao declínio gradual dos direitos das mulheres na primeira metade do século XX, período obscuro de duas guerras mundiais, mas também do nascimento da carta dos direitos humanos.
Fotos e crônicas mostram que, nos últimos anos do século XIX, homens e mulheres compartilhavam sem problemas os espaços dos terrenos nos quais o rudimentar esporte do futebol eclodia como um fenômeno social e, graças às apostas, também econômico.
As recordações mostram também que as mulheres deixavam de lado seus enormes vestidos de época e colocavam longos calções e camisetas de estilo esportivo, como se pode observar em diversas fotografias e gravuras da época.
Os registros da Federação Inglesa de Futebol (FA) – que criou o esporte com o formato e as regras que conhecemos hoje – contam que a primeira partida oficial feminina foi disputada em 23 de março de 1895, em Crouch End, Londres, e atraiu mais de 10 mil torcedores.
A partida provocou os primeiros debates, a favor e contra à prática feminina. Segundo os mesmos registros da FA, no dia seguinte ao jogo, jornais britânicos como o “Bristol Mercury” e o “Daily Post” afirmavam que “as mulheres não jogam, nem nunca jogarão o futebol como deve ser jogado”.
Mesmo assim, o futebol feminino cresceu e se desenvolveu em paralelo ao masculino até 1921, data em que a FA impôs um veto definitivo à prática feminina, alegando que “futebol não é um jogo adequado para mulheres”.
Mas nem sempre foi assim. Em 1920, logo após a Primeira Guerra Mundial, o famoso “Boxing Day”, um dia em que se disputam muitos jogos nas principais divisões dos campeonatos de futebol da Inglaterra e da Escócia, foi marcante para o futebol feminino.
A partida entre o Dick Kerrs Ladies FC, uma equipe de mulheres que trabalhavam em uma fábrica de Preston, contra o St Helen’s Ladies, reuniu mais de 53 mil torcedores no Goodison Park Stadium, em Everton – um recorde de público do futebol feminino até hoje.
Mas a FA manteve a proibição às mulheres até 1971, e a Fifa demorou mais 28 anos para organizar a primeira Copa do Mundo feminina, em 1999, disputada na China, e que teve uma excelente presença de público e recorde de audiência.
Segundo a emissora americana “ABC”, a final entre Estados Unidos e China tornou-se o jogo de futebol mais assistido da história nos EUA, com cerca de 40 milhões de pessoas acompanhando a partida, que foi transmitida para mais de 70 países, e superou a audiência das finais das Copas masculinas de 94 e 98, se igualando às finais da NBA.
Duas décadas mais tarde, as mulheres recuperaram o gramado, as arquibancadas e a paixão com a qual disputavam o futebol no final do século XIX, embora ainda continuem muito longe das cifras milionárias e do impacto provocado pelo futebol masculino.
No Mundial da Rússia, uma conquista pode ser comemorada, graças à pressão midiática e ao apoio da própria Fifa: a presença das mulheres iranianas nas arquibancadas, uma luta delas para recuperar o direito de entrar em um estádio, proibido pela religião e pelos governantes de seu país.
Em março de 2018, a revista “Forbes” publicou uma lista com as cem mulheres mais influentes do esporte internacional e, nas primeiras posições, apareciam três mulheres com cargos relevantes na Fifa e na Uefa.
A primeira delas era Fatma Samba Diouf Samoura, uma senegalesa de 54 anos, ex-funcionária da ONU em zonas de conflito, que atua como secretária geral da Fifa, braço direito e número dois do presidente, Gianni Infantino.
A brecha foi aberta em 2013 por Lydia Nsekera, uma economista nascida no Burundi que se tornou a primeira mulher a ser eleita como membro do Comitê Executivo da federação que gere os projetos do futebol mundial.
Já no Comitê da Uefa está, desde 2016, a francesa Florence Hardouin, mas ainda há outras, como a equatoriana Maria Sol Muñoz Altamirano, que foi a primeira mulher a representar a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) no Conselho da Fifa.
A evolução no cenário feminino contrasta com as atitudes abusivas e machistas que vêm se repetindo nestes dias na Copa do Mundo, nas ruas, nas áreas para torcedores e no acesso aos estádios da Rússia, onde as mulheres estão sofrendo um grave e amplo assédio físico e verbal de muitos homens.
Não há números oficiais de queixas policiais registradas desde o início da competição ou outras estatísticas que permitam conhecer a verdadeira dimensão de um problema com pouca repercussão na mídia.
É uma tarefa ciclópica, quase impossível. As torcedoras reclamam que não têm para quem recorrer, nem uma entidade do futebol internacional que as atenda, e também não contam com a polícia russa, que encontra uma barreira no idioma e na falta de treinamento adequado para lidar com esse problema.
“Sim, a verdade é que é muito desagradável. Eles te olham feio, tentam te tocar com a desculpa de que ‘cantamos e pulamos para incentivar as equipes'”, declarou Gabriela à Agência Efe, uma argentina que viajou para a Rússia acompanhada pelo namorado.
“Te pegam pela cintura e dizem coisas desagradáveis, querem te tocar a todo momento”, acrescentou Francisca, enquanto caminhava com sua família pelos arredores da Praça Vermelha, em Moscou.
Vídeos de torcedores, como o dos colombianos que humilharam torcedoras japonesas e também dos brasileiros que assediaram russas, se tornaram virais na internet e mostraram um pouco da situação, mas são apenas a ponta do iceberg que se esconde debaixo da lama machista que, infelizmente, também é gerada junto com a festa mundial do futebol.