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O conversador

Ele era feliz com as árvores, mas o ogro do agro veio e…

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

Ele sentiu presenças junto às árvores. Não viu, sentiu; mas viu breves lampejos de luz. Pensou em fantasmas, porém, tanto quanto sabia, fantasmas eram sombras, e vislumbrava clarões. Procurou controlar-se e perguntou:

– Tem…tem alguém aí?

Nenhuma resposta inicial. Em seguida, porém, as árvores balançaram as folhas, como que tocadas por um vento inexistente, e ele recebeu dezenas de mensagens jubilantes.

– O conversador voltou! Que saudades, conversador! Bem-vindo de volta, conversador! – e muitas outras, na mesma linha.

Conversador? De volta? Explicou que não podia ser ele, sempre falava com as árvores, mas era a primeira vez que recebia respostas.

– Para nós, é o conversador, não um conversador – explicou uma árvore. – O nome correto é aquele-que-conversa-com-as-árvores, mas preferimos chamar de conversador, é mais rápido – e suas folhas balançaram, com um risinho.

– Algumas de nós, as mais velhas e mais sábias, reconhecem que não é o mesmo ser, mas a maioria prefere acreditar que o conversador sentiu saudades e voltou. Deixa elas, são mais felizes assim.

Fascinado, ele a crivou de perguntas. E foi percebendo algumas peculiaridades. A noção de tempo, por exemplo, parecia não existir: viviam em um eterno presente, como os bichos e as crianças. As mais novinhas, por exemplo, não medem o tempo em dias, meses e anos, suas memórias remetem a “quandos”: quando ganhei a boneca, quando briguei com Pedrinho, e por aí vai.

Com as árvores era a mesma coisa: quando as folhas caem, quando os brotos ressurgem, quando o raio feriu nossas irmãs, quando o fogo machucou muitas de nós, quando o conversador sumiu, quando o conversador voltou… Percebeu que sua presença e essa conversa fantástica representariam um acontecimento marcante para elas, e ficou feliz.

Adaptando-se à regra do “quando” para se referir ao passado, perguntou:

– E quando havia muitos conversadores, vocês gostavam?

-Ah, era uma delícia. Eles nos contavam sobre sua terra, chamavam-na de Hélade… E, junto com eles, havia muitos outros seres que nos faziam companhia.

Ele lembrou dos clarões entrevistos e, como conhecia um pouco de mitologia, grega, mencionou as ninfas protetoras das árvores:

– As dríades, protetoras dos carvalhos, e as hamadríades, das demais árvores? Quando estavam com vocês, como eram? E quando sumiram?

– Eram lindas, lembravam mulheres humanas, e cuidavam de cada uma de nós. Mas aos poucos foram embora, nem lembro quando a última sumiu… – e deixou escorrer por seu tronco uma lágrima de resina.

– Talvez não tenham ido para tão longe – retrucou. Encorajado, mencionou as presenças sentidas, os lampejos de luz, e se propôs a chamá-las, se ainda estivessem por aí.

– Tente, por favor! Tantas vezes fizemos isso, sem resultado…

Ele se concentrou o mais possível e as convidou a se manifestar. Pouco a pouco, materializaram-se lindas figuras femininas, mas muito pálidas, demonstrando fraqueza.

– Que bom que nos chamou, conversador! Os deuses nos confiaram a missão de proteger as árvores, mas, como não conseguimos fazê-lo, sentimos vergonha e nos escondemos. Mas nunca fomos embora.

E falou em coisas que as árvores não mencionaram, ou não tiveram coragem de mencionar, como os incêndios deliberados, a urbanização sem controle e a agressão das motosserras.

– Talvez você tenha percebido que nossas protegidas nunca mencionam a morte, falam no máximo em “ferir algumas irmãzinhas”. Mas a transformação de matas em pastos, os que abatem árvores para vender a madeira e o avanço das áreas cimentadas matam, sim, algumas delas. Ou quase matam…

– Como assim?

– Percebeu que, para elas, o conversador é sempre o mesmo? E que falam dos antigos helenos como se os tivessem visto na véspera? Vivem em um eterno presente porque são imortais, ou quase isso: as raízes se comunicam debaixo do solo, o que uma experimentou, é experimentado por todas, o que uma sabe, todas sabem. A essa altura, todas as árvores de Gaia, o nosso planeta, estão felizes com a volta do conversador e das dríades – observou, com um sorriso.

Ele pensou, feliz, que seria lembrado para sempre, no “quando o conversador retornou, e trouxe as dríades de volta!”

A dríade concluiu, num tom bem sério:

– Mas o avanço da mancha urbana e do cimento quebra essa cadeia e, se as raízes forem arrancadas, o resultado é a extinção da árvore; e, no momento em que ela morre, sua ninfa protetora desaparece para sempre!

Ele prometeu fazer todo o possível para combater o desmatamento.

Certo dia, viu homens com motosserras que se preparavam para derrubar algumas árvores. Tentou impedi-los, enfurecido, e recebeu um corte profundo em um dos braços. Por sorte, um curioso gravou toda a cena e a postou; a adesão à campanha em defesa das árvores foi imediata e maciça, e a derrubada teve de ser interrompida.

– Esse homem está nos prejudicando… – reclamou um empresário do agro ogro, cascudão.

Seu capataz traduziu essas palavras para a jagunçada:

– Aquele fiodamãe defensor das árvores vai nos fazer perder o emprego! Vamos acabar com ele!

Dias depois, ao voltar de um encontro com as árvores e as dríades, o conversador recebeu vários tiros. Seu último pensamento foi:

– Vou, mas outros virão. Árvores, dríades e conversadores estarão aqui para sempre. Ou quase…

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