Noite dessas, incomodado por uma inusitada insônia, resolvi abrir, ler e ouvir com atenção duas das numerosas mensagens que recebo diariamente no zap zap sobre reflexões das mais variadas. Continuo não gostando da maioria, tampouco da variação de temas. Por exemplo, não tenho interesse algum em conhecer, discorrer, relativizar ou me intrometer nos problemas ou sentimentos alheios. Por isso, nem sempre as abro ou as leio. Normalmente tenho a impressão de que o interlocutor tenta me induzir a um posicionamento ou, na melhor análise, quer saber o que penso para pensar igual ou diferente.
Seja qual for o conteúdo ou objetivo, não costumo me convencer, muito menos me achar obrigado a responder concordando ou discordando das teorias apresentadas. Em uma delas, um texto bíblico de um amigo defensor do sertanejo Sérgio Reis listava justificativas para o cantor ter desistido de lançar um álbum com parcerias logo após seu envolvimento com o fracassado golpe de 7 de setembro. Limitei minha resposta a uma única frase: Para seu conhecimento, foram os parceiros que desistiram dele. A segunda, um vídeo com uma palestra do filósofo Leandro Karnal, me fez refletir verdadeiramente a respeito do meu sentido de brasilidade.
Após alguns minutos tentando captar a intenção do raciocínio do palestrante, conclui que já fui muito mais brasileiro do que sou hoje. O patriotismo foi substituído pela necessidade de sobrevivência econômico-financeira, política e até física. Resumindo, tive de servir àqueles com os quais não concordava e poucas vezes alcancei o privilégio de atender a quem idolatrava. São as idiossincrasias de um país miscigenado e agora dividido entre os que preferem a liberdade e os que defendem o arbítrio. Pior são os que não têm privilégio algum, inclusive o de viver com dignidade. O contraste social é tão grande como as dimensões continentais da Terra Brasilis, isto é, a concentração de muita riqueza nas mãos de uma pequena parcela da sociedade.
É o que chamamos popularmente de desigualdade social. Na verdade, nunca ficou tão evidente que, dentro do Brasil, convivem muitos e diversos países, nem sempre em paz absoluta. Hoje, existe um Brasil abominado pela esquerda e outro odiado pela direita. Ambos desconhecem e não fazem questão alguma de conhecer o verdadeiro Brasil, o Brasil que é de todos. Como dizia sempre o antropólogo mineiro Darcy Ribeiro, sempre tivemos e sempre teremos o Brasil crioulo, o Brasil caboclo, Brasil caipira, sertanejo, sulino, nordestino e agora o Brasil negacionista. É o país daqueles que se vestem de verde e amarelo, enrustidamente circulam com simbolismos expostos nos automóveis, mas claramente preferem se servir do Brasil e não servir ao Brasil.
Como bem disse Leandro Karnal, temos atualmente pelo menos dois brasis. O primeiro é o Brasil que está nos jornais, dos nossos dirigentes. “Eles conspiram, cavilam, articulam sedições, violam as leis, traem uns aos outros e também a seus eleitores, insultam-se e todos têm razão. Vivem para o poder dos cargos e das verbas”. Verdade cristalina. Seguindo na audição do mestre da filosofia, ouvi que esse “é um Brasil podre, carcomido, uma massa de bolor, de ácaros, de corrupção. Eles rastejam com seu ventre na poeira do sol de Brasília. Esse primeiro é o Brasil dos zumbis, devoradores de trabalho e de impostos”. Torci para chegar logo no país das maravilhas. Quase isso. Para Karnal, o outro Brasil é jovem, dinâmico e enfrenta filas enormes “para ouvir ideias no início do inverno.
“Debatem um futuro mais transparente e com vida. Esse segundo Brasil me emociona muito”. A mim também. “Essas pessoas ouvem, pensam, respondem, perguntam, aplaudem, criticam, refletem, ensinam pelo silêncio, ensinam pelos olhos vivos. São todos jovens, alguns com 70 anos, outros com 16. São o sangue que faz bater o coração da terra de Santa Cruz”. Fazendo minhas as palavras do filósofo, o primeiro Brasil tem poder, mas não é feliz. “O segundo ainda não sabe a extensão de seu poder, mas é alegre. O Brasil ainda é o país do futuro e o futuro é de quem ama”. Portanto, em 2022 escolhamos melhor, de modo a alijarmos do nosso convívio quem nem finge mais que governa.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978