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Leitor salvador

Em busca de corpos narradores (pensando bem, de perfis virtuais…)

Publicado

Autor/Imagem:
Edna Domenica - Foto Produção Irene Araújo

Queria inventar um falso perfil.

Você sabe pra quê… E até já inventou vários. Pensei em ser alguém bem agressivo: daqueles que entram nos grupos de redes sociais só pra zoar, para mostrar os dentes, pra criticar semnanalisar, pra perseguir velhinhas indefesas, para chocar, pra constranger, esnobar, incomodar e (por que não?) ameaçar.

Pensei em inventar ser um jovem musculoso (bombado mesmo!). Com foto na malhação. Com tatuagem de uma borboleta. Ou seria melhor um jovem com cara de nerd? Foto de alguém magro, óculos grandes, com um livro na mão… Com tatuagem de uma borboleta.

E se eu construísse os dois perfis antagônicos e participasse com as mesmas falas, teria adesões ou rejeições divergentes? Quem faria mais amigos? O que a imagem por si só possibilita ao influenciador?

Queria inventar esses dois falsos perfis para entender as pessoas…

Isso é mecanismo de projeção, interrompeu a amiga psicóloga. Pensei que fosse pesquisa da área da Psicologia Social admiti cabisbaixa.

Pensei em criar um perfil de uma garota que ficara grávida por abuso do “Seu Tio” traficante, mas me disseram que era plágio do conto publicado em 2021 pelo escritor, cantor e compositor de música popular brasileira…

E que plágio dá cadeia!

Falei que o perfil feminino que eu inventara tinha um diferencial: uma tatuagem de uma borboleta. E sua história de vida era inovadora: a menina ia querer fazer aborto… Mas me disseram que era “pior ainda!”. Que daí haveria represália da extrema direita para quem abortar o fruto do abuso é crime, mas torturar preso político não.

Esse tipo de narrativa é muito complicado, desde a promulgação da lei da anistia política, piorando em 2016, interrompeu o amigo advogado. Exorbitou nos anos 2018 a 2022.

Pensei que fosse gerar alguma discussão cidadã, refleti cabisbaixa. Pensei em criar um perfil de uma velhinha assassina (com tatuagem de uma borboleta), irmã de gêmeos siameses, e consultei a autora de A meus queridos netos, Marlene Xavier Nobre. Ela vazou para o pessoal do grupo de escritores do qual participa e eles mandaram um recado: esses personagens são do Cassiano Silveira em O beijo Do Corpo ao corpus, Rocha Soluções Gráficas, 2022, pp 53-54!

E além do mais os leitores podem querer imitar a velhinha. Quando a realidade imita a ficção fica complicado, como em 1774, quando Goethe publicou Os Sofrimentos do Jovem Werther, interrompeu o amigo professor de literatura.

Pensei que fosse gerar alguma catarse, sussurrei cabisbaixa.

Pensei em criar um perfil de uma dançarina e cantora que se apresenta durante os voos internacionais saídos do Brasil, mas me disseram que ia criar caso com a Rosilene Souza, já que ela criara antes a sua dançarina do trem e publicara em Devaneios de um instante, Do Corpo ao corpus, Rocha Soluções Gráficas, 2022, pp 55-57).

Falei, então, que o perfil da minha dançarina tinha um diferencial: sua carreira de cantora era de muito sucesso, principalmente após a exibição de duas tatuagens em lugares recônditos. Mas me disseram, novamente, que era “pior ainda!”.

Pensei que fosse fortalecer o movimento feminista, sussurrei cabisbaixa.

Pensei em criar um perfil de um pianista de um cabaré… Mas vozes sonantes me disseram: Sobre amores impossíveis, Gilberto Motta, Do Corpo ao Corpus, Rocha Soluções Gráficas, 2022, pp 37-39.

Pensei que fosse gerar alguma discussão literária, refleti cabisbaixa.

Enfim, pensei em criar um perfil de um líder de um povo originário que cultua o corpo da Mãe Terra, mas um coro de vozes me disse: “basta”, em defesa dos direitos autorais do Antonio Gil Neto em Os dias que eram só escuridão, Do Corpo ao Corpus, Rocha Soluções Gráficas, 2022, pp 61-62.

No começo, quis inventar um falso perfil por não entender a busca processual de corpos narradores. Mas agora quero inventar um perfil autêntico. Um jovem musculoso e magro, óculos grandes, com um livro na mão que não foi escrito por Werther e nem por Lorde Byron. As criações do jovem contista não espelham personagens melancólicos que possam vir a incentivar os leitores a dar cabo de suas vidas. O jovem não tem nenhuma tatuagem.

Pelo contrário. Esse perfil é o de um jovem contista que escreve uma história sobre uma jovem que se apaixona cedo, mas não engravida na adolescência porque toma aulas de educação sexual na escola pública. A personagem é irmã de gêmeos saudáveis. A mãe fez pré natal dos três filhos no posto de saúde. O pai e a mãe da personagem feminina trabalham bastante. A jovem estuda muito e cuida dos irmãos menores.

Esse tipo de narrativa não tem verossimilhança, não é fruto de mecanismo de projeção da escritora, não provoca nenhuma catarse, nenhuma discussão cidadã, não é roubo autoral ou plágio de roteiro, nem tampouco é autoajuda, interrompeu o amigo cinéfilo.

E o perfil do contista, parece ser verdadeiro?, indaguei aos amigos altaneiros.

Bem… o perfil, engasgaram a psicóloga, o advogado, o professor de literatura, o cinéfilo, a amiga militante, é muito normal, muito equilibrado…

E daí? Esquece o perfil do contista. Como a história da personagem feminina continua?, interrompeu o leitor.

Poxa, pensei, erguendo a cabeça. Bem agora que quero inventar só um perfil, me aparece o tão esperado leitor!

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Em busca de corpos narradores foi publicado em Do Corpo ao corpus.
MEROLA, E. D. org., Rocha Soluções Gráficas, 2022, pp 65-67.

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