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Teatro

Em monólogo, Maria Padilha reflete sobre a fragilidade humana

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Autor/Imagem:
Roberta Pennafort

A solidão. A fragilidade humana. Os limites da sanidade. No monólogo Diários do Abismo, em cartaz até novembro no Teatro II do Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio, Maria Padilha dá voz às reflexões que saltam dos diários de Maura Lopes Cançado (1929-1993), autora mineira diagnosticada como epilética e psicótica e que registrou sua passagem por instituições para pacientes psiquiátricos – para a atriz, não uma louca que escrevia, mas uma escritora com questões a serem tratadas.

Sozinha no palco pela primeira vez, Maria celebra seus 40 anos de carreira. “Estou aprendendo a fazer ainda, venho acostumada com As Três Irmãs, O Mercador de Veneza, 15 pessoas em cena… Agora é como jogar futebol sozinha. Eu poderia ter feito monólogo mais jovem, na cara de pau, mas minha personalidade sempre foi outra. Eu já pensava na próxima peça imaginando ‘com quem vou contracenar dessa vez?”, contava a atriz na sexta-feira passada enquanto se preparava para entrar em cena.

A ideia de encenar os escritos de Maura veio quando, na passagem de 2015 para 2016, o amigo Ney Latorraca lhe deu de presente Hospício É Deus. O romance autobiográfico foi escrito em 1959 e publicado em 1965 – “não é, absolutamente, um diário íntimo, mas tão apenas o diário de uma hospiciada, sem sentir-se com direito a escrever as enormidades que pensa, suas belezas, suas verdades. Seria verdadeiramente escandaloso meu diário íntimo”, Maura própria ressalvou. O livro narra sua vivência no hospital carioca Gustavo Riedel, no Engenho de Dentro, entre o fim de 1959 e o começo de 1960.

Maria ficou impressionada com a narrativa e a apresentou ao diretor Sergio Módena, com quem já conversava sobre um possível Chekhov: “Será que isso dá teatro?”. Ele respondeu: “Não só dá, como é mais urgente de montar”. Ao vê-la em ação, entende-se por quê: a sintaxe de Maura é precisa, seja ao contar do primeiro estupro que sofreu, ainda na infância, seja ao descrever as relações futuras com os médicos e as companheiras de internação. Quando se espera que seja depressiva, é bem-humorada.

O cenário é econômico e remete à visão poética de Maura de um quarto de hospício, com as camas alinhadas. A personagem, “um anjo com vocação para demônio”, está sozinha com seus pensamentos. Projeções de Batman Zavareze põem as palavras de Maura em primeiro plano. “A humanidade inteira é responsável pela saúde mental de cada um”, ela nos ensina. O texto foi adaptado por Pedro Brício.

“Ela sabia da sua condição, internava-se sozinha, por não aguentar a vida aqui, ter dificuldade com o jogo social. Também enxergava-se de fora. Tinha explosões, pela sensibilidade apurada de artista. Era uma mulher intelectualizada. Às vezes eu pensava enquanto lia: ‘Devo ser maluca, porque penso muita coisa igual a ela’”, diz Maria. “As pessoas têm medo da própria loucura e tratam mal os loucos, enquanto têm clemência por outros doentes.”

Sergio Módena explica a “urgência” na montagem. “Estamos vivendo um tempo de emoções muito afloradas, e o ensinamento dela é: ‘É necessário amor’”, pontua o diretor. “A obra da Maura foi redescoberta nos anos 2000, mas ainda é pouco conhecida. As reflexões são lúcidas, bem articulada. E com todo aquele sofrimento ainda tinha humor, ironia.”

Quando Maria ganhou o livro, Hospício É Deus tinha acabado de ser relançado pela editora Autêntica, depois de 30 anos fora de catálogo. O título saiu num box especial junto com O Sofredor do Ver (1968). “É um depoimento muito forte. Ela tem um modo muito intrigante e interessante de narrar. Não é como dizem, ‘aquela escritora maluca’”, afirma a editora Maria Amélia Mello. “Ela diz que nada tem a eternidade dos loucos, nem as pirâmides do Egito. Fala da humilhação que é morrer. Colocamos parte do texto já na capa, como se chamássemos: ‘Leia a Maura!’.”

De família rica e influente do interior de Minas, Maura chegou ao Rio na juventude sonhando ser escritora. Foi colaboradora do prestigioso Suplemento Literário dominical do Jornal do Brasil, o mais importante do País à época.

Já nos anos 1950/1960, Maura entendia que os eletrochoques a que era submetida deveriam ser encarados pelos médicos como tratamento, não como instrumentos de vingança por “mau comportamento”. Hoje, Maura é tema de estudos.

A encenação é uma vitória num cenário desolador para as artes cênicas, sublinha Maria Padilha. “Fazer teatro no Rio está muito difícil. Estamos sem instrumentos de fomento, e a crise fez as empresas deixarem o Rio”, lamenta. “O público da zona sul (bairros mais abastados e mais dotados de palcos) pensa que o custo-benefício é o da risada que vai dar na peça. É um momento de luta pela sobrevivência.”

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