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Mamata oficial

Enquanto miram um poder no Brasil, a boiada passeia do outro lado da rua

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Júnior* - Foto de Arquivo

Conforme os pensadores, o poder e o dinheiro não têm o dom de mudar as pessoas. Simplesmente as desnudam e as revelam. São a confirmação da velha máxima de Abraham Lincoln, para quem o modo mais fácil de conhecer a pessoa é a concessão do poder. A briga gerada pelo travamento das emendas parlamentares acirrou uma disputa antiga entre Legislativo e Judiciário. Como disse Caetano Veloso em 1984, são os podres poderes lutando pela primazia do comando e deliberadamente esquecendo que a população luta para sobreviver, para ganhar o pão e mais nada. Para os envolvidos no conflito de retóricas, o descaso com o povo acaba como um gesto banal.

Enquanto os homens exercem seus podres poderes, motos e fuscas avançam os sinais vermelhos. A metáfora parece ter sido desenhada para definir o atual momento da República. Na berlinda desde que o ministro Alexandre de Moraes foi indicado para analisar e relatar as mazelas produzidas em escala pelos bolsonaristas, inclusive pelo próprio, o Poder Judiciário, particularmente o Supremo Tribunal Federal, transformou-se em uma entediante e monotemática “vítima” do noticiário brasileiro. Não falo de críticas, mas do veneno destilado diariamente sobre seus membros. Em se tratando de Legislativo e até do Executivo, a recíproca nem sempre é verdadeira.

É um quadro emblemático e sugestivo. Todavia, não devemos entrar no mérito, porque, pelo menos até agora, o que sabemos dos processos envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro e sua trupe é decorrente da maciça contemplação dos eventuais erros e dos muitos acertos de Moraes. Tudo que sai do gabinete, da caneta ou da boca do ministro é visto e lido com duas ou três lupas. É claro que o interesse pelo tema é justificado. O que quero dizer é que, enquanto miram o Judiciário, a boiada passeia tranquilamente do outro lado da rua. Eis porque entendo como injustificável a mídia esquecer que, acatando ordens superiores de “perseguir” as pegadas de Moraes, parlamentares acostumados a passos menos republicanos usam um trator para tripudiar sobre determinações do mesmo STF.

Por exemplo, um único veículo teve a coragem de informar que, descumprindo leis, o poderoso presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), anulou os poderes das comissões permanentes da Casa e desviou o destino previamente determinado para as emendas. Na prática, Lira criou a novidade denominada “emendas dos líderes”. Em síntese, apesar das exigências de transparência da Suprema Corte, os nomes daqueles que “receberão” os bilhões em emendas permanecerão ocultos. É a mamata oficial. Isso a Globo não mostra. Pior de tudo é saber que, para oficializar a maracutaia, lideranças do governo se uniram aos líderes bolsonaristas sem qualquer preocupação ideológica.

Em outras palavras, dia após dia os políticos nos provam que não vale a pena brigar e perder um amigo para defendê-los. Vou além e afirmo que dirigir o noticiário mais para um poder do que para outro sugere uma prática negociada entre as excelências do voto. Graças ao desvio da atenção da sociedade honesta, políticos inescrupulosos nadam de braçada nas ondas da perversa corrupção. Nada de anormal, na medida em que a corrupção política é apenas uma consequência das escolhas do povo. A exemplo de milhares de brasileiros corretos, me sinto o personagem principal de pelo menos uma das centenas de frases do jornalista e escritor Millôr Fernandes. Segundo Millôr, acabar com a corrupção é o objetivo supremo de quem ainda não chegou ao poder.

Como durmo pouco para não correr o risco de sonhar com essa possibilidade, certamente levarei para o túmulo a proposta anticorrupção. Parto sempre de um pressuposto criado pelo cientista norte-americano John Kenneth Galbraith, cujo enredo estabelece que a política é a arte de escolher entre o desastroso e o intragável. Voltando aos podres poderes, “será que nunca faremos nada senão confirmar a incompetência da pátria evangélica e católica?” Será que é só minha “estúpida retórica” ou morreremos sem conseguir ver os políticos brigando pelo povo com a mesma força que o povo briga por eles. Como a harmonia entre os poderes é utopia, meu medo é que os poderosos não parem de brigar e continuem nos esquecendo trancados dentro de casa.

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*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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