Quem não tem cão...
Enquanto o Sertão não vira mar, garotada vai de rio e açude

No sertão, onde não tem mar, criança faz dos rios e açudes sua praia. É como diz o ditado: quem não tem cão, caça com gato — e quem não tem mar, se vira com o que tem. E o que tem, meu amigo, é lama, sol rachando e uma vontade danada de ser feliz.
Enquanto o povo da cidade se aperta em carro pra chegar até o litoral, no sertão o menino já acorda com a bermuda no meio da canela, o cabelo espetado do jeito que acordou, e um pedaço de pão com margarina na mão, gritando: “Bora pro açude!” A aventura começa antes mesmo do primeiro mergulho. É preciso atravessar mato, pular cerca, desviar de vaca brava e aguentar o cachorro do vizinho que não sabe brincar.
Chegando lá, é só alegria. A água pode até estar meio barrenta, mas ninguém liga. O que importa é que refresca. Tem quem pule de barranco, quem invente competição de nado (que sempre termina em empate porque ninguém chega na outra margem), e tem aquele que só entra até os joelhos, mas jura que nadou “uns cinco metros”.
Boia, ali, é luxo. Quem não tem pneu velho usa garrafa pet amarrada com corda ou um pedaço de isopor que o vento trouxe de algum canto. Tem até quem confie na tábua que servia de banco na varanda do avô. E se afundar? Ora, dá-se um jeito. A criança sertaneja aprende a nadar no grito — literalmente. Um empurra o outro, e quando vê, tá boiando no susto.
E se engana quem pensa que não tem moda de praia. No sertão, o biquíni é aquele short surrado e a camisa do time do coração, já quase transparente de tanto sabão. Chinelo é dispensável — o chão quente do caminho já cuidou de esfoliar os pés. E óculos de sol? É a mão fazendo conchinha na testa.
No intervalo entre um mergulho e outro, tem a merenda improvisada: melancia cortada com faca cega, pão com sardinha, ou aquele refrigerante quente dividido entre sete. Tudo isso debaixo da sombra de um pé de juazeiro, com mosca voando em volta e uma paz que não se compra.
A criançada se junta pra fazer castelo de lama — que desmorona na primeira ventania — e jura que é arquitetura moderna. Tem sempre aquele menino que inventa uma “ilha” no meio do açude, junta pedra, galho, plástico e acha que vai morar ali. A ilha dura dez minutos, mas rende boas risadas e o famoso grito: “Vai cair! Vai cair!” — e cai mesmo.
Quando a tarde chega e o sol começa a se esconder atrás do morro, todo mundo volta pra casa com o corpo mole, os olhos vermelhos de tanto mergulho e o coração cheio. A mãe já espera com o chinelo na mão, reclamando da lama no chão, mas no fundo, orgulhosa da infância que o filho carrega na pele e na alma.
Porque no sertão, onde não tem mar, sobra criatividade. Onde não tem onda, sobra gargalhada. Onde não tem areia branca, tem barranco e coragem. E onde não tem luxo, tem memória boa de sobra. Daquelas que, quando o tempo passa e a vida fica mais séria, ainda fazem a gente rir sozinho, lembrando da “praia” de água parada que era o nosso paraíso particular.
No sertão, a gente não espera o mar chegar. A gente inventa o mar, com tudo o que tiver à mão. E, cá entre nós, não há lugar mais bonito que esse onde a alegria se banha até quando a água é pouca.
