Tem algo de errado no entorno de Lula. A Polícia Federal e a Abin estão procurando. Já o GSI, responsável direto pela segurança e área de inteligência do próprio presidente, fechou os olhos, passou batido e Gonçalves Dias, cego e supostamente tentando dar uma rasteira, tropeçou e caiu.
A queda do general é reflexo de muita coisa que tem acontecido nesses últimos 120 dias, desde a chegada, pela terceira vez, de Luiz Inácio ao Palácio do Planalto.
Lula voltou com mais malas, mas o que se observa é que não há na bagagem conteúdo suficiente para tocar o barco com remos bem posicionados. Ele atracou e lançou âncoras, permitindo que auxiliares não petistas, por mais medalhas que ostentem no peito, assumissem o timão a estibordo e deixassem a nau sem rumo.
Portanto, muito do que se passou, poderia e deveria ter sido evitado. Mesmo porque, ao contrário do que se diz dentro e fora da caserna, idade não é patente. Tanto, que Tainha não chegou a marechal e Zero continua um recruta de cabelos brancos.
A hora é de resgatar as rédeas. Ninguém melhor do que o próprio Lula para saber que cavalo selado passa mais de uma vez. Contudo, se o equino empinar no galope, o tombo é inevitável. E há riscos potenciais de isso ocorrer.
Cargos-chave vêm sendo ocupados por quem tem cabelos prateados, como se isso fosse sinônimo de experiência e credibilidade. Mas tem gente de cabeleira com raros fios de neve que merece respeito. É pessoal de confiança e credibilidade não apenas no campo em que atua. E que já demonstrou a que veio. Lula, porém, parece estar preso numa teia de aranha prestes a ser jogada em um labirinto à beira de um precipício.
Ninguém nasce sabendo. Em 1844, Alexandre Dumas traçou, ao escrever Os Três Mosqueteiros, o que seria o futuro de um menino que nasceria 101 anos depois em Caetés, Pernambuco. Seria o Lula, já feito homem, que lutaria pelo nacionalismo, com pitadas de heroísmo e sentimentalismo aos olhos do povo. O mesmo Lula que, em 2009, caminhava para encerrar seu segundo mandato como presidente de uma República proclamada 100 anos antes por meio de um golpe político-militar.
Voltemos à questão da idade. D’Artagnan era jovem quando se juntou à Guarda dos Mosqueteiros de Louis XIII e aderiu aos inseparáveis Athos, Porthos e Aramis. Era cru em experiência tanto quanto nu nasceu. Mesmo porque, ninguém chega ao mundo pronto. Até mesmos os predestinados imperadores foram preparados para exercerem suas funções. Exigir de alguém experiência anterior para assumir uma função é a desculpa preferida de quem está no poder para que nele se perpetue. Entretanto, como não somos eternos, necessário se faz uma renovação com novos quadros.
Ao escrever sua obra mais conhecida, Dumas já indicava que ter ao lado um coroinha é bem melhor do que viver com um cardeal à sua sombra. Isso acontece hoje no Palácio do Planalto, tomado por adversos que se intitulam técnicos que servem a qualquer governante. São ditos “de Estado” e não “de governo”, como se houvesse alguma diferença.
Contudo, ninguém pode servir a dois senhores, pois odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Ter a pessoa certa no lugar certo é semelhante à cumplicidade de esposo e esposa que se amam. E foi por ser fiel apenas a um homem, que D’Artagnan conseguiu se tornar capitão dos Mosqueteiros da Guarda do palácio do rei francês.
O próprio Lula se incomoda com velhas manchas infiltradas no Planalto e até mesmo no Alvorada, onde paredes têm ouvidos. Assim, enfrentando adversidades por todos os lados, pisa em ovos quando sabe que informações sensíveis deturpam os acontecimentos e insuflam a extrema-direita com discursos reacionários. Apesar desse quadro, é fácil identificar figuras que outrora destilavam ódio contra o atual presidente, mas que agora são nomeados ou mantidos em cargos relevantes da República.
De quem seria a responsabilidade desse filtro? É necessário nomear alguém que logo em seguida será desconvidado ou até mesmo exonerado de uma função por se verificar incompatibilidade de confiança? Cargos em comissão são exatamente de confiança para que a política pública definida pelo preferido do povo seja posta em prática, e não sabotada.
Para garantir a estabilidade política e evitar o risco de um golpe ou a ameaça à autoridade civil, as tropas do Campo de Marte não podiam entrar na Urbe. Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, transformou a Casa Militar em Gabinete de Segurança Institucional. Entretanto, a cadeira mais alta dessa área permaneceu sob comando militar, da mesma forma como acontece nos governos estaduais. O GSI continuou sendo tradicionalmente chefiado por um general, que por se imiscuir na política civil regrediu na confiança dos políticos. Hoje, temos um interino civil e o destino do GSI é incerto.
Lula retirou sua guarda pretoriana do GSI e confiou essa responsabilidade a Alexsander Castro de Oliveira, especialista da Polícia Federal em facções criminosas. É este delegado da Polícia Federal o secretário extraordinário de Segurança Imediata da Presidência da República. Ricardo Capelli, que foi presidente da UNE entre 1997 e 1999 e recentemente agiu como interventor federal na segurança pública da capital da República, ocupa interinamente o buraco aberto com a saída do general Gonçalves Dias e cruza os dedos ao decidir o destino dos militares lotados no GSI e sua proximidade com o círculo político.
Lula deve escolher o novo homem do GSI que tenha perfil de lealdade, tenha história, militância desde a juventude, proximidade com a esquerda progressista, compaixão pelos que foram perseguidos, capacidade de diálogo com todos (inclusive os militares), seja tecnicamente preparado e possa efetivamente fazer o filtro de quem pode servir ou não próximo ao presidente, evitando-se assim mais uma investida por lawfare por quem definitivamente não suporta ver os mais necessitados serem contemplados por políticas públicas.
Para não dizer que não falei de flores, como diria Geraldo Vandré, a sugestão é seguir contra a correnteza na esperança de que a equipe palaciana tome as cautelas necessárias com os messiânicos. Se falta pessoal para dar conta do serviço, que chamem pessoas confiáveis para os cargos em comissão que ainda estão abundantemente vagos.
A Lava Jato, na sua essência, era recebida no próprio meio político como um corte na carne para a exigida extinção da corrupção no Brasil. Assim, instrumentos como a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Ativos, conhecida pela sigla Enccla, foram utilizados para justificar a inclusão de medidas como a “plea bargain” introduzida no Brasil em 2013 como colaboração premiada, rapidamente apelidada como delação. Vale ressaltar que o modismo anticorrupção foi inaugurado na então Encla com o acréscimo de mais um C por proposta da Polícia Federal, que mudaria suas Delegacias de Combate aos Crimes Financeiros (Delefin) para Combate à Corrupção (Delecor) na gestão de Luiz Fernando Corrêa, como diretor da PF em 2007.
No entanto, este canto da sereia, sedutor e atrativo, mas perigoso, como não foi abordado com o devido cuidado, desandou para conspirações entre um magistrado com anseios políticos e parquets gananciosos que lucrariam “combatendo corrupção”. Isso foi possível corrompendo os instrumentos das conhecidas delações premiadas, onde delegados e delegadas induziam presos a acusar políticos para que fossem soltos, criando um arcabouço burocrático que poderia levar qualquer um para a prisão e, principalmente, criminalizar a política, dando espaço ao armamentismo e ao discurso de ódio.
O aviso foi dado quando o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, reclamava de pressões de ambos os lados para que as investigações seguissem este ou aquele modelo. Assim, como na ocasião de sua ascensão no governo Erundina, acabou por deixar afundar outro governo de uma primeira mulher no poder. As reclamações eram procedentes, é verdade, pois, como se viu na “Vaza Jato”, era imprudente deixar que investigações de fatos ocorridos em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília fossem realizadas junto ao cooptado por interesses nada republicanos com sua equipe em Curitiba.
Aqui já foi dito, aqui se repete. Desde 2007 apenas um décimo dos delegados federais têm acesso aos cargos de confiança, criando uma bolha de poder onde só entra quem for recrutado. A roda gigante até gira entre um diretor e outro, mas os contemplados só trocam de lugar entre superintendências, adidâncias e diretorias. Não faltam voluntários para pisar em quem tiver que pisar para entrar no time. E não importa quem seja o governante. Da esquerda à extrema direita, basta decorar o discurso de que “sou técnico e não político” ou “somos um órgão de Estado” para a retórica superar o que se espera do pragmatismo da realpolitik e pôr em xeque a própria sobrevivência política.
Sente-se no ar uma brisa que pode virar ventania, espalhando aos quatro cantos a conjuntura inaugurada em 2007. É imprescindível, a Lula, evitar que se permita em seu governo a sugestão do personagem-príncipe de Falconeri, para quem “tudo deve mudar para que tudo fique como está”. Querer isso, é o mesmo que pedir a Eduardo Appio uma Lava Jato II.
Para corrigir as falhas em seu entorno, Lula não precisa recorrer à ajuda dos universitários. Um clique no Google resolve. O presidente recordará que seus antecessores, como Fernando Collor, extinguiu em 1990 o SNI e deixou o país vulnerável a ameaças internas e externas, contribuindo, inclusive, para sua derrocada. Cinco anos depois Fernando Henrique Cardoso criou a Agência Brasileira de Inteligência. Enquanto o SNI era um órgão sem quadro permanente, onde militares selecionados executavam as ordens para espionar os inimigos do regime, a Abin estruturou-se com oficiais e agentes de inteligência, seguindo uma doutrina mais republicana. O único sonho dos seus servidores de carreira, que pode virar pesadelo, é almejar dirigir o próprio órgão, criticando as nomeações de delegados federais para suas diretorias.
Necessário enfatizar que a Abin ser dirigida por um agente público originário da Polícia Federal não é o maior de seus problemas. A dificuldade (e caberá aos senadores descobrirem quando forem avaliar o nome indicado) será saber até onde Luiz Fernando Corrêa é isento para ocupar o cargo. Até porque, trata-se do delegado que criou as condições para a Lava Jato enquanto dirigia a PF. Há supostas manchas no ar, como a reservada informação de que em maio do ano passado a residência dele foi assaltada numa operação cirúrgica e sem rastros. De lá levaram as informações mais sensíveis arquivadas em seu computador pessoal; também foram subtraídas, na mesma ação, câmeras de segurança com gravações de suas reuniões caseiras. O que se discutia lá pelos lados do Park Way? Quem está de posse de todo esse material?
A indicação como seu imediato de um conhecido colaborador de Anderson Torres e outros bolsonaristas faz parte de um suposto acordo para que sua intimidade não venha a público? Qual seria seu calcanhar de Aquiles e em que mãos está a flecha? O ainda não sabatinado futuro chefe da Abin serve ao Estado, ao governo ou ao seu algoz?
Perguntas assim transportam ao início do texto. O entorno de Lula está cheio de James Bond tupiniquins. Mas, como cabe a quem pariu, balançar Mateus, que se haja rápido. As raízes bolsonaristas estão bem fincadas. O Planalto não pode ser comparado às muralhas de Tróia. E não cabe a Lula fazer o papel de Ulisses, porque o Brasil não se chama Penélope.