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Lixo, meu aprendizado

Entre entulhos, uma bela história marcada pelo tempo

Publicado

Autor/Imagem:
Mércia Souza - Foto Irene Araújo

Deprimida eu brigava com a vida, minha vontade de viver era enorme, contraditório eu sei, temos a impressão de que deprimido não quer viver, errado, eu ansiava pela vida em sua totalidade.

Minha vontade se tornou desespero, mulher, educada para se casar, para manter um casamento, uma casa, um lá, eu não dava conta e me sentia culpada.

Culpada por não dar conta de tantas tarefas, por não conseguir cuidar de mim, mas principalmente por não aguentar meu casamento. Religiosa entrei numa briga interna, eu discutia comigo me perguntando porque eu não era capaz de amar meu marido? Seria tão simples, ele já estava ali mesmo.

A dor aumentava a cada dia, eu queria o fim do meu casamento, no entanto eu não buscava nada demais, na minha cabeça eu só queria caminhar na praia sem que isso fosse um problema, eu queria dormir até mais tarde no domingo e me sentir descansada, saltar de parapente sem ter que mentir, sentar-me no shopping com uma amiga sem que isso me custasse uma semana de cara emburrada. Eu estava pedindo demais.

Eu não estava, mas ouvia dos meus “amigos” religiosos que essas coisas não são certas quando você é casada, no entanto só servia para mim, para meu marido, tinha a defesa de que nós mulheres devemos entender que os homens são educados de uma forma, bem para o casamento com essa educação e que nós (mulheres) devemos aprender a lidar com aquilo que “ele” trouxe na bagagem.

A minha, eu preciso aprender a ignorar, e aqui nasce outra questão dentro de mim, minha bagagem minha educação dentro dos padrões machistas e religiosos, o que me faz pensar que não quero a obrigação de lidar com a bagagem dele e muito menos carregar a que me deram, mas não faço ideia de como lidar com isso, não é falta de coragem, é culpa, medo e principalmente falta de informação, eu não quero essa vida, mas sinto-me na obrigação de vive-la. Entrei em um desgaste emocional tão grande que passei a ter crises de infecção urinária e asma, aos poucos, depressão.

Eu gritava por qualquer motivo e falava demais, meus amigos sabiam da minha insatisfação, mas não se atreviam a dar conselhos, como amigos, penso eu que eles gostariam de me dizer para ir em busca do que me fizesse feliz, o que naquele momento significava o divórcio, o que colocava meus amigos na berlinda, como seriam a favor do divórcio? Então me ouviram, e me ouviram.

Naquela terça-feira de 2010, não me lembro a data, mas era mês de março, uma bela manhã e eu na minha pior crise, não queria ver ninguém, falar com ninguém, queria dormir e acordar uns anos depois, minha amiga Daiana ao contrário de mim energia sobrando, me ligou às 7h20 da manhã me chamando para ajudar a limpar a casa de praia e aproveitar para tomar uma cerveja no fim da tarde, prometendo que me traria de volta antes do meu marido chegar.

Eu não tinha ânimo nenhum, naquela terça eu estava muito mal, pedindo a Deus um sinal, uma resposta, estava completamente desestruturada e desesperada, por outro lado matar um dia de trabalho e sair sem dar satisfação era tentador.

Daiana continuava a insistir e eu, acabei aceitando, não tinha nada a perder, e não mudaria minha vida, mas me daria algumas horas de sossego, fomos.

A casa estava uma completa bagunça, parecia meu coração. Começamos pela cozinha, pequena e em alguns instantes nossa prática como donas de casa deu conta. Fomos para a sala, tinha muito menos bagunça, também foi rápido, seguimos em dupla por todos os cômodos até o quarto, esse dava nojo, restos de embalagens, roupas velhas, o colchão úmido. Comecei a limpeza na cama, enquanto Daiana recolhia os lixos.

– Esse colchão… Vai colocar para secar? Perguntei recolhendo os restos de embalagens com comida em cima da cama.

– Deus me livre, vou jogar no lixo e falar com meu marido que estragou, já temos muito trabalho, para quê limpar colchão? Ela respondeu se virando para me ajudar na retirada.

Jogamos o colchão na caçamba do outro lado da rua. Enquanto eu caminhava de volta para a casa, Daiana mudou de direção indo ao bar comprar duas cervejas para nós. Enquanto eu aguardava, continuei a retirada dos papéis deixados embaixo do colchão, porém entre a bagunça algo me chamou a atenção, um livro, faltando umas quinze páginas de seu início e algumas após a finalização.

A primeira frase do livro era “Nada é por acaso,” eu havia escutado essa frase a semana inteira e a visualização dela me chamou a atenção, ainda de pé iniciei a leitura, antes que Daiana voltasse, eu que há anos não lia, em poucos instantes estava fascinada com a leitura, havia consumido dez páginas em instantes.

Ouvi a porta abrir, Daiana voltava com mais que duas latas, eram oito.

– Pretende trabalhar bebendo? Perguntei rindo.

– Não, vamos terminar o quarto e beber, já fizemos o bastante, outro dia eu lavo a casa toda. Respondeu se dirigindo à geladeira.

Esperei por ela na sala envergonhada em pedir para ficar com lixo.

Percebendo que eu queria algo ela parou na porta me olhando com curiosidade.

Sorri sem graça.

– Posso ficar com esse… resto de livros? Perguntei.

Apesar de estar em meio ao lixo debaixo de um colchão úmido e faltando páginas, suas folhas estavam bem conservadas. Ela, não ficou surpresa, natural respondeu:

– Claro, sobre o que é?

– Um médico americano. Respondi sem muitos detalhes colocando o livro na bolsa.

Terminamos, pegamos as cervejas, colocamos em uma bolsa térmica junto com uma garrafa de água e seguimos para a praia.

A noite, de volta a minha casa, filhos e marido alimentados e cuidados, tudo pronto para o dia seguinte, me vi cansada, mas a curiosidade com a leitura me fez tirar vinte minutos.

Me vi presa naquele livro, não queria parar de ler, me apaixonei, e no dia seguinte lia a cada intervalo no trabalho, disfarçada no ônibus, já que não tinha capa e mesmo sem tempo em três dias terminei a leitura do livro e nunca mais o esqueci, aquele livro do qual eu não sei o autor e provavelmente nunca saberei, mudou minha vida.

O autor, o personagem principal, iniciou dizendo “Nada é por acaso “ embora o livro não tinha numeração de páginas, ao longo da história entendi que essa era a frase de início, que relata a história de um médico que foi transferido dos Estados Unidos para a Itália durante a guerra de Mussolini, italiano, o médico cresceu no Estados Unidos, se formou médico, casou-se e por quinze anos era um médico respeitado no hospital onde trabalhava, e um pequeno erro levou seus anos de trabalho e seu reconhecimento como um excelente profissional, levando-o em seguida a obrigação de responder ao chamado para trabalhar como médico na guerra, conhecendo então outra realidade, dando a ele uma outra percepção da vida, sendo obrigado a viver um dia de cada vez, no entanto a mudança que o levou a guerra veio dois anos antes, quando ele se via insatisfeito e sem saída, aceitou o conselho de um monge, e um pequeno gesto, no início para ele algo insignificante, mas não tinha nada a perder, então seguiu o conselho, ele só precisava chegar em casa e dizer “eu te amo “ a esposa para sua trajetória se modificar completamente, levando-o a um caminho muito mais difícil, no entanto muito mais correto e feliz.

Infelizmente não posso contar aqui toda a história daquele livro, mas após a leitura um leque se abriu em minha cabeça, senti como se todas as informações que eu precisava estivessem escondidas ali, dentro de mim o tempo todo, a leitura daquele livro me deu um novo caminho, não pensei duas vezes, no dia seguinte voltei a estudar, alguns meses depois eu estava também na terapia, cinco anos mais tarde eu estava divorciada, terminando me ensino médio, dona do meu negócio e encantada pelo mundo literário.

……………………

Mércia Souza, mãe, avó, artesã crocheteira e escritora. Três livros publicados, participação em diversas antologias, descobriu sua paixão pela escrita aos 12 anos na biblioteca municipal Rubem Braga. Atualmente reside na cidade de Cachoeiro de Itapemirim – ES.

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