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Performance inalterada

Envelhecer é uma arte no Brasil sem memória

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

Feliz, de bem com a vida e gaiato quando sobra algum cacau antes de terminar o mês, estou aproveitando o que ainda me resta de criatividade. Já ouvi dizer que envelhecer é moderno. É por aí, pois, nas rodas de jovens, valho menos do que um celular da Feira do Rolo. Às vezes, consigo ser abduzido por figuras que teimo em não conhecer, entre elas os tais Facebook, Twitter, Instagram e Streaming. Espero e confio, mas um dia partirei para o after. Por isso, tenho pressa. No Brasil, sem memória, onde até a natureza é obscena, sorrio sempre, ainda que saiba que gaiatice também tem limite. Egresso da geração Asdrúbal Trouxe o Trombone, grupo do qual era groupie, hoje decepciono na gestão de ladeira. Tenho dificuldades para controlar o freio de mão. Nada disso me preocupa mais.

O que me tira da caixinha é justamente a falta de apoio para aqueles que, por força do tempo, estão obrigados a agir, a pensar e a viver compulsoriamente. Qualquer deslize pode significar o fim. Atualmente, nem preciso de bebidas ou drogas para ficar tonto. Basta levantar rápido. Em síntese, para a maioria dos brasileiros, eu inclusive, envelhecer é uma arte. Daqui por diante, meu pressuposto é que não há fatos eternos, assim como não há verdades absolutas. Numa analogia com a política moderna, basta compararmos um santo com um ladrão e concluiremos que o santo era do pau oco. Do que aprendi, jamais esqueci que, em época de mentiras universais, dizer a verdade é um ato revolucionário. Boas ou ruins, lendárias ou fictícias, as melhores verdades são aquelas que vêm da alma. Lembro de uma frase célebre do poeta Vinícius de Moraes sobre religião e espiritualidade.

Adepto do paganismo e constantemente flertando com o ateísmo e com os bordéis, Vinícius é imorrível. Infelizmente, boa parte dos jovens não o conheceu. Uma pena. De certa feita, ele foi prático ao responder a uma indagação relativa à reencarnação. “Tenho dúvidas, mas, se pudesse reencarnar, gostaria de voltar exatamente como sou. Apenas com o bilau um pouquinho maior”. É a minha filosofia e o meu desejo. Vinícius partiu em julho de 1980, mas deixou ensinamentos infindáveis. Um deles é cada vez mais atual: “O que faz a diferença é a qualidade das relações a partir dos 50 anos”. Eita sabedoria pai d’égua. Seguindo a máxima de Vinícius de Moraes, não tenho medo da idade. Saudades só do creme Nívea, substituído pelo Cataflam gel.

Também sigo o exemplo de Mário Lago: “Fiz um acordo com o tempo…Nem ele me persegue, nem eu fujo dele. Qualquer dia a gente se encontra”. É dessa forma que vou vivendo intensamente cada momento. Aliás, mais prazerosa do que intensamente. Por exemplo, com o passar dos anos fiquei mais hábil. Hoje, sem muito esforço e com algum cinismo, consigo rir, tossir, espirrar, urinar e bufar ao mesmo tempo. Querem coisa melhor? Eu conto. Passei dos 50 e uns e continuo desejado. Obrigado pernilongos. Até na cama não tenho mais limites. Noite passada caí duas vezes. Minha única preocupação é sair de braços dados com uma das filhas ou sobrinhas – todas lindas e laboriosas – e cair na boca do povo por estar se envolvendo com uma moça que deu mau passo.

Privilégio negado a muitos, envelhecer é pura poesia, porque até o sorriso fica entre aspas. Costumo dizer que não sou velho, mas sim um adolescente vintage, reciclado. Antes de começar a esquecer de tudo que sei, mantenho apenas uma certeza: terei iniciado o processo de envelhecimento no dia em que deixar de me indignar com as injustiças do mundo, particularmente com as do Brasil, onde os índios valem menos do que um grama de ouro. Resumindo, para me reerguer, recorro a Millôr Fernandes, cuja tese mais famosa é a mais simples: “É preciso muito talento para envelhecer”. Diria também que envelhecer é obrigatório. Ficar chato é opcional.

Ser feliz é o que importa. Parafraseando o escritor moçambicano Mia Couto, não tenho medo de pensar na velhice. Tenho medo é que a velhice pense em mim. Consciente de que o tempo é um escultor de ruínas, não deixo barato. A performance de alcova continua a mesma. As três tentativas e as três desistências de molestação são sagradas a cada seis meses. Para minha sorte, as mulheres de certa idade nunca são de idade certa. Por isso, sempre as levo à loucura quando acaba a pilha da prótese tomada emprestada de um amigo militar. Aliás, perdoem-me a pressa. Descobri que hoje completam seis meses do último espetáculo. É dia de saliência. Estou correndo pra ver se acho o escondidinho que cozinhei e não acho.

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